Sob o signo da restauração
capitalista
Por Mário Maestri (*)
Via Política, 11/12/10
A notícia foi brutal. Raul Castro
anunciou nada menos do que o licenciamento de 500 mil
trabalhadores da área estatal. Mutatis mutandis,
qualquer coisa como desempregar 10 milhões de trabalhadores
no Brasil! E tudo com vagas promessas de alguma ajuda e
financiamento para os que pretenderem se estabelecer como
trabalhadores independentes. Encerrando esse cenário dramático,
as direções máximas da Central de Trabajadores Cubanos
bateram continência concordando com a agressão histórica
ao mundo do trabalho cubano e latino–americano.
O paradoxal anúncio constitui a parte
mais explícita da aceleração do processo de restauração
capitalista que a direção máxima cubana pretende
sancionar quando do VI Congresso do Partido Comunista de
Cuba. Movimento de desmonte da ordem socialista, iniciado há
15 anos, que se prepara para conhecer salto de qualidade
através do “Proyecto de Lineamentos de la Política
Econômica y Social”, de 1º de novembro, apresentado
à militância comunista para ser aprovado no congresso do
PCC de abril.
Cuba: avançar ou soçobrar
A única revolução socialista
vitoriosa nas Américas deu–se em região singularmente
desfavorável. A uns 140 quilômetros do coração do
capitalismo, Cuba é região singularmente desfavorecida: é
pobre em minérios; não possui fontes para produção de
energia hidráulica; vê–se assolada periodicamente por
tufões; possui população diminuta para a organização de
produção em escala etc.
A inserção de Cuba na comunidade das
nações de economia nacionalizada e planejada foi
imprescindível ao avanço do socialismo cubano. Porém,
significou–lhe também a adesão às práticas autoritárias
e burocráticas de gestão da URSS e dos países do Leste,
que terminaram favorecendo suas destruições, em fins dos
anos 1980. Autoritarismo que, matizado na versão cubana,
coadunava–se com o monopólio da direção do Estado
mantido pela direção restrita do MR 26 de Julho, em fase já
gerontocrática.
Na nova divisão mundial, Cuba passara
sobretudo a trocar vantajosamente com a área socialista, a
produção açucareira potenciada por petróleo, tecnologia
e outros bens. Radicalização monocultora que ensejou que
uns 50% da proteína consumida fosse importada, acrescendo a
dependência anterior à Revolução, em contexto de
crescente consumo. Registro de administração burocrática
jamais entregue à direção direta e criativa dos
trabalhadores.
Em inícios de 1990, quando da vitória
da contrarrevolução neoliberal, o fim da URSS e a dissolução
controlada ou não da economia socialista no leste europeu
causaram choque medonho à economia cubana. Em poucos meses,
dissolviam–se relações de trocas tecidas durante 40 anos
– nada menos do que 85% do comércio mundial cubano.
Interrompia–se também o fornecimento de peças do maquinário
adquirido em empresas em ex–países de economia
nacionalizada agora privatizadas ou dissolvidas.
O período especial
Em 1991, a quase interrupção do
aparato produtivo e enorme crise econômica permitiu previsões
sobre a rápida restauração do capitalismo, que o
imperialismo EUA procurou acelerar com o bloqueio econômico
e novas emendas e leis (Mack e Smith, de 1989; Toricelli, de
1991, Helms–Burton, de 1996). As expectativas agourentas não
se realizaram, graças à maciça mobilização popular em
defesa da revolução e suas conquistas. Então, era clara a
consciência das novas e velhas gerações do que se
perderia com a restauração capitalista.
A aprovação das medidas do Período
Especial em Tempo de Paz, em fins de 1990, reorganizou a
produção, o consumo e a vida civil em contexto em que a
população teve que, literalmente, usar os pés para chegar
aos locais de trabalho e ensino, devido à falta de
gasolina, e a consumir o mínimo em calorias e proteínas
necessárias à sobrevivência. O racionamento protegeu os
velhos, doentes e crianças.
A vitória mundial neoliberal
influenciou a reorganização da economia e da sociedade
cubana, acompanhada por importantes decisões estruturais
jamais deliberadas efetivamente pela população. Declinou
entre os administradores a desconfiança na planificação,
na propriedade estatal, no igualitarismo socialista,
aumentando o prestígio do mercado, dos resultados
individuais, da competição, dos privilégios de remuneração.
Nova orientação
O abandono da monocultura do açúcar;
a ênfase no turismo mundial; a reorientação das trocas
com a União Europeia, etc. deram–se com a abertura
crescente às inversões de capitais mundiais, sobretudo –
mas não apenas – no turismo, inicialmente em associação
com o Estado. No plano interno, por primeira vez, permitiu–se
a constituição de empresas mercantis simples, exploradas
por trabalhadores por conta própria [cuentapropismo].
Orientação que fortaleceu os segmentos sociais
restauradores.
No novo contexto, criou–se dualidade
de moedas, a nacional, para o pagamento da população
ligada ao setor estatal–socialista, e a extraordinária,
ligada ao dólar, inicialmente para os turistas adquirirem
produtos e serviços em estabelecimentos especiais, a seguir
abertos à população com meios para tal. Permitiu–se a
posse de moeda convertível, a fim de incentivar remessas do
exterior, sobretudo dos EUA, uma das grandes receita da ilha.
Expressão da nova e surda luta de
classes no interior da ilha, as duas esferas de produção–consumo,
cada qual com sua moeda, estabeleceram luta à morte, em
crescente favor da economia mercantil–capitalista, agora
terrivelmente hegemônica no mundo exterior. O recuo dos
produtos antes garantidos pela libreta de abastecimiento
e subvenções públicas, determinado pelo governo, obrigou
a população a procurar crescentemente na área dolarizada
os bens imprescindíveis à sobrevivência.
O extraordinário se transforma
em ordinário
Nesse mundo terrivelmundo novo,
qualquer parente que enviasse do exterior 100 reais garantia
aos familiares o obtido com o trabalho mensal em empresa pública!
Ao lado disso, em uma corrida, um taxista autônomo ganhava
e ganha o valor do salário mensal de um trabalhador,
atualmente equivalente a uns 60 reais. Emergiram nítidas
diferenças de classes, com a crescente desmoralização dos
segmentos sociais ligados, sem privilégio, à propriedade e
economia estatal.
As exigências e necessidades do grande
capital mundial e dos setores da economia mista e mercantil
expressavam–se no governo através dos membros da alta
administração e da oficialidade das forças armadas, em
geral envolvidos na administração das empresas
exportadoras e de capital misto. Eles criaram as condições
para o ataque à Constituição de 1976, definida por Fidel
Castro, quando de sua promulgação, como garantia inarredável
da propriedade e sociedade socialista.
Já em 1982, o decreto–lei nº 50
permitira o direito de usufruto e de arrendamento de instalações
industriais e turísticas ou similares aos capitais
estrangeiros, em flexibilização dos preceitos
constitucionais que não atingia ainda à propriedade em
sentido estrito dos bens públicos de produção. Essa
reforma não atraiu inversões significativas, em uma época
em que se mantinham as trocas com a área socialista.
Fim do monopólio dos meios de
produção
As concessões organizativas ao capital
privado exigiam garantias de propriedade. Na continuidade da
liberalização iniciada pelo Período Especial, foi
realizada reforma constitucional, em 1992, liquidando o
monopólio da exploração e propriedade pública dos meios
de produção, através da legalização de novas formas
mercantis de empresas: empresas mercantis mistas, de
capitais privados ou privado e público; empresas mercantis;
empresas mercantis cooperativas etc. A reforma
constitucional aprovou também o fim do monopólio estatal
do comércio exterior, já não mais “função exclusiva
do Estado”.
Finalmente, em setembro de 1995, a Lei
77, “de Inversões Estrangeiras” praticamente escancarou
todos os setores da economia aos capitais privados, à exceção
da saúde, da educação e das forças armadas,
parcialmente. Os capitais privados conquistavam, igualmente,
o direito de não serem expropriados, de adquirirem bem imóveis,
de venda de seus haveres para outro investidor, de exportar
e importar diretamente bens, de exportar os lucros obtidos
com a exploração dos trabalhadores cubanos, sem a
necessidade de pagar impostos de transferência e passar
pelo Banco Central Cubano.
Não se realizou, entretanto, o
desembarque de capitais estrangeiros privados, conhecida
pela China e, secundariamente, pelo Vietnã, previsto e
organizado pela burocracia cubana. A atração de capitais
foi e segue sendo tendencialmente entravado pela esfera de
produção estatal e pelas conquistas gerais da revolução
socialista, com destaque para o direito ao trabalho. Como
visto na ex–URSS, Polônia, ex–Iugoslávia etc., não há
restauração capitalista sem a reconstrução de exército
de desempregados.
A reconstrução do reino da
necessidade
Apesar da literal prostituição da
capacidade de consumo dos trabalhadores da área pública
estatal, o acesso à saúde, segurança, educação e
moradia tem impedido a formação de exército de
trabalhadores obrigados a venderem a preço vil a força de
trabalho, sob o açoite da necessidade econômica. Para que
a produção capitalista reorganize a ilha, é imprescindível
a reconstrução do reino da necessidade. Daí a terrível
proposta de lançar no desemprego 500 mil trabalhadores –
verdadeiro “cercamento dos campos” tropical! [Enclosures
Land's]
O Proyecto de los Lineamientos
apresentado à militância comunista comporta verdadeiro
esvaziamento do conceito de socialismo e sua ressemantização
em sentido social–liberal: “Na política econômica que
se propõe está presente que o socialismo é igualdade de
direitos” e “de oportunidade para todos os cidadãos”
e, jamais, “igualitarismo”. Indiscutível adesão ao ideário
democrático–liberal de direitos de igualdade jurídica e
de competição, em sociedade estruturalmente
desigual devido sua divisão antagônica em exploradores [detentores
dos meios de produção] e explorado [meros detentores da
força de trabalho].
Nos fatos, o documento abandona
inapelavelmente o princípio essencial do socialismo como
erradicação da exploração, através da garantia da
satisfação das necessidades mínimas dos cidadãos, no
contexto de remuneração ligada à qualidade e à
quantidade do trabalho. Em paráfrase perneta da proposta clássica
marxiana, propõe o abandono do “igualitarismo” pelo
princípio de “cada qual segundo sua capacidade, a cada
qual segundo seu trabalho”. Liquida, portanto, a parte
essencial daquela célebre formulação sintética, ou seja,
a cada um “segundo suas necessidades”!
O fim da planificação
O desfibramento do planejamento é
parte fundamental da orientação ditada pelo Proyecto de
los Lineamientos, a ser implementado através da concessão
de ampla autonomia administrativa, financeira, de preços e
de salários, para as empresas mercantis e públicas. A
planificação transforma–se em simples plano indicador
geral que sequer privilegia a propriedade–produção
estatal, desqualificada em relação às “empresas de
capital misto” público–privado ou privado–privado;
“empresas privadas” nacionais e internacionais;
“cooperativas”, “usufrutuários de terras”,
“arrendadores de estabelecimentos [públicos]”,
trabalhadores privados.
O Proyecto de los Lineamientos indica
impudicamente os caminhos para a canibalização da
propriedade pública pela produção capitalista e
mercantil. As empresas estatais deficitárias serão
“submetidas a processo de liquidação”, abrindo–se
assim caminho à privatização das mesmas, a partir do
direito de “arrendamento”, de emprego “em usufruto
permanente” e de compra, pelo capital privado ou por
cooperativas de “proprietárias dos meios de produção”.
Caminho que permitiu na ex–URSS e em outros ex–países
socialistas a compra e, melhor ainda, arrendamento
de estabelecimentos falidos forçadamente
por ex–administradores ligados à alta hierarquia do
regime.
A transposição para a produção
mercantil, de serviços públicos como refeitórios e
transportes de operários, barbearias, táxis etc., através
do “arrendamento” dos bens estatais, já em
desenvolvimento, constitui igualmente forma de privatização
que procura construir base social para a reorganização
privada geral da produção. Para não sabotar o
projeto de privatização, nos “restaurantes operários”
sob o controle do Estado, está prevista a prática de refeições
“a preços sem subsídios”.
Redução drástica dos salários
sociais
É forte entre importantes setores da
população a ilusão de reorganização da sociedade em
sentido mercantil que preserve o fornecimento público dos
serviços relativos à saúde, educação, cultura, moradia,
segurança, lazer. Ou seja, uma Suécia nos trópicos! Para
restauração capitalista, o baixo nível do desenvolvimento
das forças produtivas materiais cubana exige
necessariamente elevado grau de exploração da força de
trabalho, com inapelável diminuição substancial daqueles
direitos para enorme parcela da população.
O Proyecto de los Lineamientos é claro
nesse sentido, ao propor a literal supressão de
“gratuidades indevidas [sic] e subsídios pessoais
excessivos” [sic], em país em que a maior parte da população
vive literalmente com o mínimo necessário à subsistência.
Anuncia–se também a crescente responsabilização direta
dos assalariados e de seus familiares pelos gastos com a
assistência social.
No contexto do anúncio do avanço da
diferenciação das remunerações, o Proyecto de los
Lineamientos define a necessidade de resgatar “o papel do
trabalho” [salário], “como via fundamental para” a
“satisfação das necessidades pessoais e familiares”.
No mesmo sentido, exige–se a transferência, para a
responsabilidade do indivíduo singular, das “prestações
[sociais] que possam ser assumidas pelas pessoas ou seus
familiares”. Uma indiscutível ruptura com a solidariedade
social no relativo a prestações e serviços públicos, em
favor de sua dependência aos recursos individuais.
Cada um por si
Não há piedade sequer com os direitos
de educação do trabalhador, que deverá estudar, se quiser,
no seu “tempo livre” e a “partir de seu esforço
pessoal”. Anuncia–se igualmente o fim da unidade
previdenciária, com esfera pública e “regimes especiais
de contribuição para o setor” privado. No mesmo sentido,
prevê–se diminuição dos serviços públicos na área
dependente do orçamento estatal [pública], no relativo à
“saúde e educação”. Reduzidas ao “mínimo”, as
empresas desses setores que puderem “financiar seus gastos
com seus ingressos” passarão a ser “autofinanciadas”
ou se converterão “em empresas”. Ou seja, poderão se
transformar em cooperativas ou empresas privadas!
O golpe mais duro e imediato na população
trabalhadora ativa e jubilada ligada ao setor público é o
anunciado fim crescente da libreta de abastecimiento,
criada para “distribuição normatizada, igualitária e a
preços subsidiados”. Com a também proposta futura superação
da dualidade monetária, a população será obrigada a
procurar os bens mínimos para a subsistência no mercado
livre, com moeda forte, de valor determinado pela nível de
trocas internacionais. Aos desempregados e mal empregados,
logicamente, as cascas!
A privatização anunciada das terras
é ainda mais ambiciosa, pois devido aos desmandos da
crescente privatização da economia, sob o comando de
burocracia incompetente, atualmente mais de 50% das terras férteis
encontram–se ociosas. Sem definição de limite, a entrega
de terras aos interesses privados já em curso, abrirá espaço,
certanebte, para o futuro ingresso de multinacionais do
agronegócio, que saberão certamente valorizar, com o
trabalho mal pago, os inúmeros engenhos açucareiros
desmobilizados como improdutivos.
(*) Mário Maestri, 62, rio–grandense,
é historiador e professor do Programa de Pós–Graduação
em História da Universidade Passo Fundo, no Rio Grande do
Sul. E-mail: maestri@via-rs.net
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