Italia

O racismo como política do Estado

Por Florence Carboni & Mário Maestri
Via Política, 12/08/08
Fotos de Gregório Carboni Maestri
Milão, Viale Jenner, julho de 2008,
diante da mesquita interditada

Pressionado por Hitler a perseguir os judeus italianos, Mussolini teria respondido não ter porque fazê–lo, pois viviam desde os tempos de Roma sem incomodar. Essa historieta faz parte da falsa legenda de um fascismo italiano menos desumano, já que não responsável, igual ao nazismo, pelo pecado racista, em geral, e anti–semita, em especial.

Em A caça aos hebreus: Mussolini, Preziosi e o anti–semitismo fascista [2 ed. Milão: Mondadori, 2007], Romano Canosa lembra que a grande razão da Itália não ter conhecido um forte anti–semitismo, ao igual que a Alemanha, a Polônia, a França, etc., foi “porque [os judeus] eram poucos” e haviam se tornado “cidadãos a título pleno”, quando da Unificação.

O historiador lembra que, na Itália, na Idade Média, foi forte o anti–semitismo, sobretudo clerical – inventando–se literalmente na época o gueto –, e que o fascismo ditou leis raciais antes da radicalização exigida no fim da guerra pelo hitlerismo, quando Giuseppe Preziosi (*), o teórico do anti–semitismo italiano foi nomeado “Inspetor Geral da Raça”.

Sem colônias e de industrialização e unificação tardias, a Itália conheceu poucos imigrantes estrangeiros até os anos 1980. Em verdade, o racismo foi fortemente utilizado, nos anos 50 e 60, no Norte, contra os italianos chegados do Sul, em especial para dividir a combativa classe operária setentrional. Ainda hoje, as contradições entre o Norte e o Sul seguem sendo utilizadas por movimentos racistas e separatistas, como a Liga Norte.

Vida muito dura

A Itália vive forte crise. Seus salários estão entre os mais baixos da Europa, enquanto o custo de vida é um dos mais elevados da União Européia. As cada vez mais precárias condições do trabalho, devido à desregulamentação neoliberal empreendida nas últimas duas décadas, contribuem igualmente para aumentar a insegurança da população.

Após o longo governo conservador de Sílvio Berlusconi, dois anos de governo de centro–esquerda de Romano Prodi, em 2006–8, que prosseguiu na senda neoliberal e não cumpriu uma sequer das promessas eleitorais, a direita retornou ao governo, na esteira de campanha eleitoral que agitou fortemente a ameaça do imigrante à segurança pessoal, social e econômico do italiano, descentrando a discussão das questões estruturais do país.

A transformação do estrangeiro no bode expiatório dos males sociais facilitou o forte deslocamento à direita de parte do voto operário desencantado, sobretudo, com esquerda comunista, que participou e colaborou com o governo anti–popular de Romano Prodi.

Naquele pleito, a parte mais significativa da esquerda comunista, que se apresentou em coligação, sob o nome “adocicado” de A esquerda do arco–íris, composta pelo Partido da Refundação Comunista e Partido dos Comunistas Italianos, sob a direção geral do reformador Fausto Bertinotti, recuou de oito para pouco mais de 3% da votação nacional, ficando fora do parlamento, por primeira vez desde a queda do fascismo, enquanto a moribunda Liga Norte, de extrema direita, foi vivificada pelo voto de segmentos populares literalmente desesperados.

Primeiras medidas

Uma das primeiras medidas do governo direitista foi propor legislação que tornaria crime a permanência no país do estrangeiro sem visto, suspensa parcialmente devido ao movimento quase geral de protesto contra a criminalização de uma enorme população trabalhadora apenas semi–clandestina. Mais grave ainda tem sido a literal agitação racista governamental.

Mantidas as proporções, o açulamento do ódio e a legislação contra comunidades étnicas diabolizadas pelo governo restabelecem, 60 anos após o fim do regime fascista de Mussolini, o racismo como política de Estado e como meio de conquista – manipulação do consenso popular, a fim de melhor implementar políticas conservadoras contra a população e os trabalhadores.

Mutatis mutandis, vivemos patético retorno ao passado, com agora os ciganos e muçulmanos, principalmente, ocupando o lugar que já coube aos judeus como raças malditas, início e fim de todos os males sociais. O que não significa que africanos, asiáticos, latinos – entre eles brasileiros – etc. não sejam também objeto dessa intoxicação xenófoba ininterrupta do governo e dos partidos direitistas, com destaque para a Liga Norte e a Aliança Nacional.

Hoje vivem na Itália em torno de 150 mil ciganos [rom], nascidos no país ou chegados nos últimos anos fugidos da guerra da Iugoslávia e, especialmente, da dissolução dos regimes socialistas balcânicos, onde conheciam política de defesa social e promoção profissional, interrompida sob uma restauração capitalista que retomou a perseguição e descriminação contra as minorias frágeis.

Os ciganos são os culpados

Relativamente pequena em relação aos quase 59 milhões de italianos – no Brasil vivem de seiscentos mil a um milhão –, a população cigana adapta–se como uma luva ao projeto de diabolização social, pela visibilidade de seus acampamentos de ocasião, pela sua perambulação pelos centros das metrópoles, pela prática de pequenos furtos e pela histórica incapacidade dessa comunidade de se organizar e defender. O genocídio nazista do povo cigano durante a II Segunda Guerra permaneceu no semi–olvido por décadas, por literal falta de interesse nesses dramáticos sucessos e incapacidade da comunidade de exigir reparação, mesmo simbólica.

Apenas entronizado, o novo governo criou um “Comissariado Extraordinário para a Emergência” cigana que está empreendendo em Milão e nas principais cidades do país o fichamento da população cigana. Acampamentos ilegais estão sendo desocupados por forças policiais fortemente armadas. Crianças ciganas, nascidas na Itália, são não raro impedidas de irem a escola, e o governo planeja tomar suas digitais, prática de fichamento jamais praticada no país desde a derrota do fascismo. Essa população supostamente nômade já começa a ver negado o acesso à saúde pública, garantido no passado a todo cidadão vivendo no país. Acampamentos rom foram e continuam sendo atacados e incendiados.

Aproveitando a diabolização mundial de que a população muçulmana é objeto, sobretudo desde os acontecimentos de 11 de setembro de 2001, é também muito forte o ataque governamental italiano à população imigrada islâmica local, formada sobretudo por trabalhadores imigrados. Um assédio não menos pérfido, mas mais nuançado que aos ciganos, devido à maior capacidade de organização e resposta dessa comunidade, na Itália e no mundo.

Governos municipais de direita, marcadamente, têm açulado o ódio contra o muçulmano através do fechamento, com destaque para Milão, dos principais locais de culto, obrigando a comunidade islâmica à humilhação de rezar em locais de ocasião, até agora transferidos praticamente a cada semana, e até mesmo pelas ruas.

Surda campanha

Como nos tempos mussolinianos, agitação, retórica e legislação racistas estatais são retomadas e exacerbadas pela grande imprensa, em forma mais ou menos aberta, e pela militância de base dos partidos de extrema direita, formada comumente por capas sociais médias e segmentos desclassados, organizados em movimentos e partidos direitistas, neo–fascistas e separatistas.

As ruas de muitas cidades, mesmo as mais pacíficas, já são são trilhadas por grupos de vigilantes, não raro sob o beneplácito das autoridades municipais, e as agressões contra estrangeiros não são esclarecidas ou efetivamente punidas. Os meios de informação contribuem fortemente para a histeria racista extrapolando e agitando eventuais delitos de estrangeiros, apesar das estatísticas apontarem serem as taxas de criminalidade dos imigrados inseridos na sociedade italiana mais baixas do que as da população nativa em igual situação e, por indicar, igualmente, que há muito mais mortos devido às péssimas condições de trabalho do que em conseqüência da criminalidade.

A partir de 4 de agosto 2008, três mil soldados foram deslocados nas principais cidades da península para desempenharem funções policiais em “centros de detenção de estrangeiros”, em “locais sensíveis” e, sobretudo, no patrulhamento urbano, ao lado de forças policiais, com destaque para cidades politicamente importantes e reconhecidas como tranqüilas, como Milão, Turim ou Bolonha. Isso em um momento em que o mesmo governo se apresta a cortar radicalmente os efetivos policiais do país.

Enquanto a perseguição ao cigano, ao muçulmano, ao trabalhador estrangeiro, ilegal e, em alguns casos, legal, –é possível que entre eles se encontrem dezenas de milhares de brasileiros– conquista o consenso mesmo entre segmentos da população trabalhadora, levada a acreditar que tais medidas favorecerão sua existência, o governo empreende ataque incessante aos segmentos trabalhadores e aos mais desprotegidos. Velhos, aposentados, desempregados e jovens da população italiana têm restringidas a estabilidade do trabalho, salários diminuídos, dificuldades nas concessões de pensões sociais, cortes nos gastos com a saúde e a educação, o que deixa claro que a verdadeira comunidade estrangeira combatida por este governo dirigido pelo maior capitalisita italiano, reconhecidamente envolvido em dezenas de casos de corrupção e delitos diversos, é o trabalhador e a trabalhadora italianos, e seus partidos e organizações.

09/08/2008


(*) Florence Carboni é italiana e lingüista. Mário Maestri, 60, brasileiro, é historiador.

1.– Na noite de 26 de abril de 1945, Giuseppe Preziosi e sua esposa saltaram do quarto andar de prédio de apartamento, em Milão, procurando com a morte escapar da inevitável prestação de contas pelos crimes racistas empreendidos pelo mussolinismo, derrotado pelas tropas aliadas e pela população italiana sublevada.