Historia

Círculo de Ferro

Milcíades Peña e o capitalismo pastoril argentino

Por Mário Maestri (*)
Para Socialismo o Barbarie, junio 2010

“El drama de la historia argentina seguía en pie: no había ninguna clase con interés en hacer del país una gran nación capitalista.” (p. 103)
“La historia no brindaba ninguna salida para este circulo de hierro.” (p. 24)
[Milcíades Peña, “El paraíso terrateniente”]

I. O caráter da colonização ibero-americana

Em forma explícita, dois autores marxistas, Décio Freitas, no Rio Grande do Sul, em 1980, e Milcíades Pena, vinte anos antes, na Argentina, defenderam, o caráter capitalista da produção pastoril da bacia do Prata. O primeiro, em polêmica marginal ao centro de sua produção e investigação historiográfica, referente à escravidão colonial brasileira, o segundo, em uma interpretação geral sintética da formação social argentina. Um debate de certo modo suspendido com a regressão das pesquisas sobre o caráter das estruturas sócio-econômicas das formações sociais, no contexto do descrédito lançado sobre esses estudos pela maré neo-liberal triunfante de fins dos anos 1980.

1. Décio Freitas e o Capitalismo Pastoril Sul-Rio-Grandense

Em 1980, polemizando com parte da historiografia tradicional sul-rio-grandense, que defendia, em forma acanhada, a importância do trabalhador escravizado na produção pastoril, o historiador Décio Freitas apresentou o ensaio “O capitalismo pastoril, introdutório a livro homônimo. Nele, publicou textos históricos referentes ao debate e sua defesa do caráter capitalista do pastoreio extensivo sul-americano e dos estancieiros como “burguesia pastoril”, no período colonial e pós-colonial.[1]

No trabalho, assinalou que inúmeros autores latino-americanos compartiam da mesma visão, citando a Sérgio Bagú, em Estructura social de la colônia, de 1952; a Ruben H. Zorrilla, em Extracción social de los caudillos: 1810-1870, de 1972, que se apóia em Sérgio Bagu; e em Nahuel Moreno, em Quatro tesis sobre la colonización española y portuguesa, de 1954. [2] No geral, esse último autor reproduziu, em forma reducionista, as propostas do historiador Milcíades Peña para a Argentina. Décio Freitas apoiou sua tese em passagens de O capital, de Marx. [3]

Décio Freitas nasceu no Rio Grande do Sul, em 1922, e faleceu, em Porto Alegre, em 2004. Quando estudante, em meados dos anos 1940, militou no PCB, mantendo-se a seguir como intelectual marxista, politicamente próximo ao trabalhismo. Nos anos 1940, trabalhou como jornalista nos periódicos sul-rio-grandenses Correio do Povo, Diário de Notícias e Tribuna Gaúcha, este último do PCB. Formou-se em Direito, pela UFRGS, dedicando-se à advocacia. Participou do governo João Goulart [1961-1964]. Foi cassado pelo regime militar e refugiou-se por breve tempo em Montevidéu, após 1964, onde escreveu estudo historiográfico sobre a confederação dos quilombos de Palmares, publicado, em 1971 e 1973, respectivamente, naquela cidade e em Porto Alegre.

Escravidão e Luta de Classes

A edição em português de seu livro, Palmares: a guerra dos escravos, conheceu diversas edições, corrigidas e ampliadas, e repercussão historiográfica, cultural e política. Em forma relativamente original, o estudo destacava o caráter escravista da sociedade brasileira e os quilombos como forma de luta de classes. [4] Nos anos seguintes, Décio Freitas publicou outros livros sobre a escravidão e sobre a luta de classes na Colônia e no Império, sem igual repercussão.[5]

Freitas foi fortemente marginalizado e hostilizado por ideólogos conservadores e pela historiografia acadêmica, sobretudo sulina, que consolidara sua institucionalização e se profissionalizara durante a ditadura militar. Veto ideológico que se apresentou comumente como crítica a uma narrativa historiográfica dirigida ao grande público. Freitas escrevia em forma elegante, sintética e despreocupado com as normas da historiografia acadêmica, como a citação em notas das fontes que apresentava, em forma geral, na conclusão do trabalho.

Em “O capitalismo pastoril”, Freitas citou exaustivamente, em notas, suas referências, restritas à documentação primária e secundária publicada. Sob a pressão da maré neoliberal de fins dos anos 1980, como tantos outros intelectuais, rendeu-se às posições conservadoras, na historiografia, sociedade e política. Então, como editorialista e colunista do jornal Zero Hora, da RBS, tornou-se um dos mais ativos, destacados e criativos pensadores conservadores sulinos. Nesses anos, publicou livros de pouco valor, de forte cunho ficcional, memorialístico e conservador, que apresentava como historiografia.

Em 1980, em “Capitalismo pastoril”, Décio Freitas deduzia o caráter capitalista da produção pastoril sulina dos séculos 18 e 19, apoiado em dois grandes argumentos. Primeiro, o latifúndio pastoril era propriedade “alodial” e, portanto, “isenta de quaisquer vínculos ou dependência, podendo o dono dispor dela como bem entendesse, para a compra e a venda, [...] etc.” No que tinha absoluta razão, ainda que esta não fosse condição suficiente para a definição de produção rural capitalista. Segundo, devido ao fato de a fazenda pastoril, segundo ele, apresentar “aquilo que” era o “traço específico do capitalismo: não apenas a produção de mercadorias, de resto presente em outros sistemas, mas a transformação da própria força-de-trabalho em mercadoria, como outra qualquer.”

Trabalhadores livres

Décio Freitas defendia que, nos séculos 18 e 19, no Sul, a “massa de trabalhadores rurais” fosse composta “de homens juridicamente livres que, não possuindo a nenhum título os meios de produção”, tinham “que vender sua força-de-trabalho para prover à sobrevivência.” Afirmava que o trabalho “escravo ou semi-servil” apareceria em forma “esporádica e isoladamente nessa produção pecuária”, onde preponderava “em forma absoluta” o “trabalho assalariado”. Definia os “posteiros”, categoria social secundária da exploração pastoril, como relação semi-feudal, devido ao fato de não receberem salários por suas funções, mas apenas o direito a explorar a terra e por dependerem do arbítrio dos proprietários. A fazenda pastoril sulina seria “sistema de produção social baseado no trabalho assalariado, o que importa dizer sistema capitalista”. Ainda que “impuro, dependente e subdesenvolvido”. [6]

O próprio esforço de Freitas para enquadrar a produção pastoril extensiva sulina nas categorias analíticas marxianas referentes à produção capitalista circunscreve a fragilidade da sua proposta. Nesse trabalho, define o “gado alçado”, “pilhado” nas “arreadas ou vacarias”, como “capital constante e circulante” que teria constituído a base inicial do desenvolvimento da “empresa pastoril capitalista” e apresenta, o mesmo gado como “mercadoria-boi”, surgida no processo da produção. [7] Tenta inutilmente superar a contradição de produção pastoril extensiva determinada fortemente pelo “tempo de produção [sic] natural”, diante do baixo aporte do “tempo de produção social”. [8]

Maior ainda é a dificuldade em adequar a mão-de-obra pastoril extensiva sulina desse período ao leito de Procustro da proposta “mão-de-obra livre e assalariada”. Freitas reduz a contribuição do trabalhador escravizado na estância às tarefas domésticas, agrícolas e auxiliares, descartando-o das funções pastoris propriamente ditas por razões lógicas – o cativo custava caro; fugiria, se tivesse um cavalo à disposição; o africano não conhecia o pastoreio e era caro treiná-lo nessa atividade, etc.[9] Reserva as funções pastoris exclusivamente para os trabalhadores assalariados, com destaque nos primeiros tempos para a população indígena ou de origem indígena, vista como “trabalhadores ideais para a produção pecuária”. [10]

Relações Pré-capitalistas

Ao discutir a informação sobre os trabalhadores livres no pastoreio que reúne, Freitas foi obrigado a registrar objetivamente as características pré-capitalistas dessa força de trabalho. Destaca, por um lado, o emprego não permanente do produtor direto nas estâncias e, por outro, sua remuneração sob forma de alimentação, de moradia, etc., complementada por “algum salário” monetário. “[...] o estancieiro não pagava totalmente em dinheiro o salário. Parte deste era pago em espécie, ou seja, diretamente em meios de subsistência.” [11]

Meios de subsistência dos trabalhadores provenientes, por um lado, da esfera de produção natural da estância e, por outro, de parte da produção da esfera mercantil da mesma propriedade que não era escoada ao mercado. O fato de que o gaúcho, na função de peão, pudesse se empregar e afastar periodicamente das tarefas pastoris, assinalava já não estarem dadas as condições de separação plena dos produtores diretos da reprodução autônoma dos seus meios de existência. Ou seja, não existiam as condições necessárias para a formação de exército de trabalhadores de reserva. [12]

A própria documentação primária editada consultada por Freitas sugeria e assinalava que as grandes estâncias serviam-se necessariamente da mão-de-obra escravizada, nas tarefas auxiliares e pastoris propriamente dita – “cativos campeiros” –, devido à incapacidade dos estancieiros de garantir em forma ininterrupta a produção apoiando-se em homens livres, sem servir-se de meios coercitivos usados no Prata. Realidade comprovada exaustivamente por investigações posteriores apoiadas sobretudo nos inventários post-mortem das grandes fazendas pastoris do século 18 e 19. [13] A importância do cativo campeiro fora proposta, apoiada em documentação primária, por membros da historiografia tradicional, quando da polêmica com Décio Freitas que originou o ensaio “O capitalismo pastoril”, como assinalado.

2. Milcíades Peña: Um Esboço Geral de Crítica da Formação Social Argentina

Milcíades Peña passou meteoricamente pelo cenário cultural argentino. Nasceu em 1933, em La Plata, falecendo em 1965, aos 32 anos. Com mãe mentalmente doente, de saúde frágil na infância, foi criado por tios mais velhos, descobrindo acidentalmente aos onze anos seu nome de batismo, sua verdadeira mãe, seus três irmãos mais velhos. Sofrendo possivelmente de depressão, realizou tentativas autocidas na adolescência. Casou-se e teve um filho, em 1964, morrendo no ano seguinte por ingestão de pílulas. [14] Em seu breve tempo de intervenção social, política e cultural, militou na corrente marxista-revolucionária morenista, da qual se afastou, sem jamais romper com o marxismo-revolucionário [trotskismo], para dedicar-se à historiografia, desenvolvendo refinada interpretação da história argentina, da colonização ao peronismo.

Disposto a escrever uma história geral da Argentina, Milcíades Peña alcançou apenas a apresentar o esboço de sua interpretação, em seis breves livros, redigidos nos anos 1955-57: Antes de Mayo: formas sociales del transplante español al Nuevo Mundo [1500-1810]; El paraíso terrateniente: federales y unitarios la civilización del cuero [1810-1850]; La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infamia 1850-1870]; De mitre a Roca: consolidación de la oligarquia anglocriolla. [1870-1885]; Alberdi, Sarmiento y el 90 [1885-1890]; Masas, caudillos y elites [1890-1955]. [15] A partir de curso que ministrou na Escola de Engenharia de Buenos Aires, em 1958, foi publicada sua Introducción al pensamiento de Marx, de importante caráter renovador. [16]

A leitura de Milcíades Peña, mais de meio século após a sua morte, revela escritor e pensador de invulgar sensibilidade e talento. Os inevitáveis limites de sua interpretação, em parte devidos ao breve tempo de sua produção e ao desenvolvimento da historiografia e das ciências sociais de então, sobretudo latino-americanas e argentinas, não diminuem a enorme importância dessa literatura. Ainda mais por que, uma das características de sua reflexão é que desnudava, em forma consciente ou inconsciente, as suas grandes contradições analíticas, não raro sugerindo possíveis soluções para as mesmas.

Milcíades Peña é considerado por muitos como um dos mais argutos historiadores marxistas argentinos. No Brasil é autor praticamente desconhecido, não contando, salvo engano, com traduções, mesmo parciais. Em sua pátria, suas obras não foram reeditadas nos últimos anos, segundo parece por proibição de seu filho, político tradicional menor, que porta o mesmo nome que o pai. Seus trabalhos são facilmente disponíveis em reproduções na internet. É difícil imaginar os avanços interpretativos que esse autor chegaria se não tivesse desaparecido tão jovem.

Antes de Maio

O primeiro ensaio de Milcíades Peña, Antes de Mayo: formas sociales del transplante español al Nuevo Mundo, dedicado ao período histórico sobretudo argentino que vai de 1500 a 1810, aborda, com certo vagar, os acontecimento da Revolução de Maio, realizando dessacralização das apologias historiográficas que apresentaram e apresentam aquele evento como “revolução social”, “revolução democrático-burguesa” e “movimento de base popular”. O autor lembrava que a “Revolução de Maio” foi processo que se materializou sobretudo na esfera política, não revolucionando minimamente a organização social e econômica regional, que se manteve no essencial idêntica à colonial, ao igual do que ocorreu, no Brasil, em 1822, quando do rompimento com Portugal. [17] Peña assinala: “El movimiento que independizó a las colonias latinoamericanas no traia consigo un nuevo régimen de producción ni modificó la estructura de clases de la sociedade colonial. Las clases dominantes continuaron siendo las terratenientes y comerciantes hispano-criollos, igual que en la colonia.” [18]

A primeira grande iniciativa da “Revolução de Maio” foi o defenestramento do vice-rei Baltazar Hidalgo de Cisneros e a extinção da burocracia administrativa ibérica que governava o vice-reinado em nome do soberano espanhol, deposto pela intervenção napoleônica. Peña lembra que o movimento sequer fora inicialmente autonomista e republicano, sendo fortes os carlotistas entre os principais líderes crioulos. A declaração cabal de independência da Argentina seria feita apenas em julho de 1816, no congresso de Tucumán. Em O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na bacia do Prata, o historiador brasileiro Moniz Bandeira assinala que a pretensão de Carlota Joaquina, esposa de dom João 6º, ao vice-reinado do rio da Prata, após a abdicação de seu pai e a prisão de seu irmão, recebera o “apoio de vastos setores das classes dominantes de Buenos Aires, tradicionalmente ligadas aos interesses do comércio português, e alguns líderes, como Juan Martín Pueyrredon, Manoel Belgrano, Saturnino Rodrigues Peña”, que a “quiseram proclamar Regente [...] ou a coroar imperatriz da América.” [19]

Milcíades Peña destaca que os sucessos de Maio foram obra sobretudo das classes proprietárias, com destaque para a “burguesia comercial”, ou seja, para os comerciantes portenhos crioulos, associados aos grandes criadores bonaerenses. Assinala que a revolução não contou com a participação ativa dos subalternizados, mesmo livres, que nada tinham a ganhar e, não raro, algo tinham e perderam com a iniciativa.

Produzindo para Vender

Milcíades Peña propõe igualmente que os gauchos, o principal segmento plebeu da campanha bonaerense e do Prata, foram mantidos e mantiveram-se estranhos ao movimento. E que a radicalização da liberdade comercial, sobretudo em proveito da oligarquia mercantil crioula, ligada ao comércio britânico, tendeu a destruir o artesanato e a produção pequeno-manufatureira das províncias de Buenos Aires, do Litoral e do Interior, com graves seqüelas sociais. Quanto aos cativos negros, foram enviados numerosos para os exércitos revolucionários, a fim de substituir os patriotas poucos dispostos a morrer pela liberdade. Essa seria uma das razões da forte queda da população afro-descendente nessa região.

A proposta de Milcíades Peña da inexistência de classes populares modernas, capazes de influenciarem a direção política dos sucessos, mantida sob o controle dos segmentos dominantes crioulos, que dessem eventualmente um caráter democrático àqueles acontecimentos, apóia-se em uma das maiores contradições analíticas de sua interpretação da antiga formação social argentina: a caracterização da colonização hispânica como capitalista, devido ao seu “conteúdo” e a seus “objetivos”, que eram, segundo ele, essencialmente, “producir en gran escala para vender en el mercado y obter una ganancia”. [20]

A produção para o mercado, com o objetivo do lucro, não é determinação suficiente para a definição do caráter econômico do mundo colonial como capitalista, como lembravam, nos anos 1960, ao questionar essa tese, ideólogos ligados ao Partido Comunista Brasileiro, ao se referirem ao Brasil, pois aquela caracterização e polêmica abarcavam a América Ibérica como um todo. Marxista sensível, Milcíades Peña intuiu o limite e contradição de sua proposta. Procurou superar a contradição da dedução do caráter da colonização a partir de esfera não atinente à produção, com a definição dos criadores de Buenos Aires como classe burguesa produtora completa, ainda que de caráter colonial. Proposta que estendeu a toda a América ibérica. “Clase productora más importante de la colônia – estancieros en la Argentina, y en general, en toda América Latina, productores para el mercado mundial – son a no dudarlo capitalista, sus intereses son capitalista, pero un capitalismo colonial [...].”[21]

3. Raízes e Sentidos Político de um Debate Historiográfico

Desde antes da II Guerra, a historiografia marxista ortodoxa apoiava no proposto caráter feudal ou semi-feudal da colonização americana a necessidade de etapa democrático burguesa da revolução na América Latina. O que exigiria a subordinação dos trabalhadores à “burguesia nacional progressista”, em frentes populares, para, apenas cumprida a etapa democrático-burguesa da revolução, ser avançado o programa socialista. Uma orientação que teve importância determinante na vida política da América Latina.

No Brasil, a política de revolução democrático-burguesa contribuiu ao desastre das propostas populistas e nacional-desenvolvimentistas, quando do golpe militar de 1964, apoiado por toda a “burguesia progressista” nacional. Segundo o receituário proposto pelos partidos comunistas, esta última deveria ter-se mobilizado contra o latifúndio semi-feudal e o imperialismo e não comandar o ataque geral aos trabalhadores e ao padrão de desenvolvimento capitalista autônomo.

A mesma proposta de revolução por etapas, democrático-burguesa e a seguir socialista, foi enfatizada pelos partidos comunistas e seus intelectuais nas décadas pós-stalinistas. No Brasil, a interpretação foi defendida por importantes pensadores ligados direta e indiretamente a essa orientação política, entre os quais se destacaram Alberto Passo Guimarães [1908-1993] e Nélson Werneck Sodré [1911-1999].

Capitalista desde a Origem

Em fins dos anos 1940, a interpretação feudal do passado latino-americano e a conseqüente proposta de necessária etapa democrático-burguesa anterior às tarefas socialistas, avançadas pelos partidos comunistas, foram impugnadas por estudiosos de orientação socialista revolucionária. Em forma mais ou menos desenvolvida, eles propuseram a definição do caráter capitalista das formações coloniais americanas, em alguns casos, desde a origem da colonização européia!

Entre esses autores descaram-se os sociólogos argentino Sérgio Bagú [1911-2002][22], teuto-estadunidense André Gunder Frank [1929-2005][23] e brasileiro Ruy Mauro Marini [1932-1997].[24] No Brasil, essa interpretação seria também perfilhada pelo célebre historiador marxista dissidente Caio Prado Júnior, antigo integrante do PCB, em, entre outros trabalhos, A revolução brasileira.[25]

Entretanto, o debate sobre o caráter feudal ou capitalista da colonização não surgira inicialmente determinado pelo confronto político-ideológico assinalado. Em História econômica do Brasil, de 1937, o economista Robert C. Simonsen [1889-1948] criticara a ênfase no “aspecto feudal do sistema das donatarias” luso-brasileiras e definira a clara orientação capitalista da colonização lusitana, precisamente devido à orientação das atividades para o lucro. [26]

Orientação Mercantil

Aos defensores da tese das origens capitalistas a América, o corolário indiscutível da definição de uma colonização capitalista, desde os primeiros tempos, devido à sua intencionalidade e orientação mercantis, era a vigência e a urgência na América Latina da revolução socialista. A partir dos anos 1940, quando se estabeleceu esta polêmica, era indiscutível que sobretudo as principais formações sociais latino-americanas – Argentina, Brasil, Chile, México, etc. – conheciam organização sócio-econômica capitalista dominante. Porém, era certamente arbitrariedade recuar essa definição para o início da colonização.

 Além da proposta de sociedades que teriam conhecido, do século 16 a inícios do século 20, apenas crescimento quantitativo e jamais qualitativo, a definição capitalista das formações latino-americanas coloniais propunha contradições epistemológicas insolúveis. Entre elas, destacava-se o desenvolvimento capitalista das colônias americanas antes das metrópoles européias. Ou seja, a transposição para as Américas, por classes dominantes européias ibéricas feudais e mercantilistas, de formas de produção superiores e em contradição com as que se apoiavam nas metrópoles.

Nesse sentido, tinha razão um dos mais brilhantes críticos da proposta de Sérgio Bagú sobre o “capitalismo colonial”, abraçada por Milcíades Peña, quanto à Argentina, e Décio Freitas, no relativo ao Brasil, entre outros autores. Em 1963, em Quatro séculos de latifúndio, Alberto Passos Guimarães escrevia que a orientação e a produção para a venda no mercado eram “peculiares, em proporções crescentes, a toda a longa história vivida pela economia mercantil [...]”. Defendia pertinentemente que, se tomássemos “como ponto de referência, para definir e classificar os regimes econômicos, os fenômenos inerentes à circulação”, teríamos que aceitar a “absurda igualdade entre todos os sistemas sociais por que passou a Humanidade, a contar do momento em que abandonou a vida primitiva.”[27]

O Criador e a Criatura

Eram igualmente pertinentes os reparos avançados por Passos Guimarães sobre a transposição feudal de ordem capitalista. “Percebe-se o conteúdo apologético dessa concepção errônea, pois com ela se admite que o sistema colonial, em vez de transportar para o território conquistado os elementos regressivos do país dominante [...] selecionaria os fatores novos determinantes da evolução social e deles se serviria para fundar [...], sociedade de um tipo mais avançado que as metropolitanas.” [28] Porém, Passos Guimarães incorria em crasso erro analítico, ao propor, em vez da transposição capitalista precoce, instalação regressiva, ainda que ad hoc.

Arrancando de pressuposto epistemológico correto, a impossibilidade da transposição de modo de produção superior, Passos Guimarães defendia, contra as evidências históricas que à Metrópole “não lhe” teria restado “outra alternativa política senão a de transplantar para a América Portuguesa o modo de produção dominante no além-mar” – o modo de produção feudal. Para o autor, tal transposição teria sido feita, sobretudo, com a concessão do “monopólio feudal da terra” para os homens bons.

Estabelecida a propriedade feudal no Brasil, sempre segundo Passos Guimarães, teria faltado o servo para explorá-la. Assim sendo, os novos feudalistas apoiaram a transposição superestrutural da forma de produção, em superação na Europa, na mão-de-obra escravizada, primeira indígena, a seguir africana, em verdadeira regressão histórica à escravidão clássica, no que se refere a força de trabalho. “Na impossibilidade de contar com o servo da gleba, o feudalismo colonial [sic] teve de regredir ao escravismo [...].” [29]

Construção Arbitrária

A proposta interpretativa de Passos Guimarães constituía construção arbitrária, do ponto de vista factual e metodológico. As sesmarias eram propriedades de cunho alodial, como assinalara Décio Freitas, podendo os proprietários vendê-las, alugá-las, doá-las, etc. Os sesmeiros não possuíam direitos eminentes e restritos sobre elas, como no feudalismo. Passos Guimarães criticava corretamente a dedução de modo de produção da orientação e circulação mercantil, mas deduziu a forma de produção de inexistente instância super-estrutural, o feudalismo.

O próprio Passos Guimarães lembrara que, em interpretação marxista, o “básico num regime econômico é o sistema de produção, isto é, o modo por que [ou seja, pelos quais], numa determinada formação social, os homens produzem os bens materiais de que necessitam viver e que determina todos os demais processos econômicos e sociais, inclusive os processos de distribuição ou circulação de bens.”[30] Em A ideologia alemã, Marx e Engels lembravam que, o que os homens são, dependem “ das condições materiais de produção”, refletindo-se tanto no que “produzem quanto” na “maneira como produzem”.[31]

Na leitura marxiana da sociedade defendida formalmente por Passos Guimarães, a forma de propriedade constitui decorrência tendencial da forma de produção. Como na tese capitalista da colonização ibero-americana, a contradição essencial do proposto caráter feudal ou semi-feudal encontrava-se na esfera da produção, em geral, e nas relações sociais de produção objetivadas, em particular. Incorriam em contradição insolúvel as propostas de ordem feudal ou capitalista funcionando, respectivamente, em trabalhadores escravizados e assalariados. Ou seja, em relações sociais de produção escravistas e capitalistas.

Salto Regressivo

A contradição mais gritante da interpretação feudal da produção americana era seu apoio substantivo na mão-de-obra escravizada. Quanto à interpretação capitalista, sua contradição mais aparente era a inexistência de produtor direto, produtor de mais valia, no uso de maquinarias e métodos de produção modernos. Trabalhador obrigado a vender, em forma tendencialmente ininterrupta, a totalidade de sua força de trabalho como mercadoria, devido à incapacidade de produzir seus meios de subsistência.

Marx era claro sobre as determinações essenciais do trabalhador subsumido ao modo de produção capitalista. “Ci voglion secoli perchè il ‘libero’ lavoratore si adatti volontariamente, in conseguenza dello sviluppo del modo capitalístico de produzione, cioè sai socialmente costreto a vender per il prezo dei suoi mezzi di sussistenza abitualia l’intero suo período attivo di vita, anzi, la sua capacita stessa di lavoro [...]”. [32]

Ainda após a Revolução de Maio [1810], por longas décadas, os estancieiros do Prata lançaram mão à compulsão extra-econômica para manter o gaucho como peão na estância, ou serviram-se da mão ao trabalhador escravizado, como em boa parte do Uruguai, com destaque para os departamentos setentrionais.[33] No relativo ao Rio Grande, as fazendas pastoris começam a substituir os trabalhadores escravizados por livres apenas nos últimos anos da escravidão, abolida em 1888.

Falsa Disjuntiva

Se, por um lado, a historiografia stalinista e pós-stalinista defendia a dominância do feudalismo colonial na origem da colonização, em boa parte com trabalhadores escravizados e sem servos, em propriedade de claro caráter alodial, para impugnar a luta pelo socialismo, por outro, historiadores marxistas defendiam capitalismo colonial sem operariado, para avançar o programa socialista. No frigir dos ovos, nos dois casos, negavam a determinação do modo de produção pela forma específica de produzir os bens sociais, condicionada pelo desenvolvimento das forças produtivas materiais e das relações sociais de produção que se estabeleciam a partir das mesmas, base essencial em uma interpretação social marxista.

Apenas nos anos 1960 seria superada a vulgata stalinista e pós-stalinista do necessário e consecutivo trânsito de todas as sociedades dos cinco grandes modos de produção, definidos por Marx e Engels quando do estudo das formações sociais europeus – “comunismo primitivo”, “escravismo clássico”, “feudalismo”, “capitalismo” e “socialismo”. Uma superação em boa parte devida a retorno à leitura livre da literatura marxiana que facilitou que as ciências sociais reconhecessem as múltiplas formas e modos de produção conhecidos pela humanidade.[34]

Essas investigações revelariam o caráter sui-generis da colonização nas Américas, sem as transposições mecânicas feudal e capitalista propostas. Um movimento que, no Brasil, com destaque para as investigações de Jacob Gorender e Ciro Flamarión Cardoso, abriu caminho à compreensão do caráter dominante do escravismo colonial, na constituição da antiga formação social do Brasil. Muito forte a partir dos anos 1960, esse movimento científico praticamente interrompeu-se após a maré neoliberal de fins dos anos 1980, como assinalado. [35] Devido ao seu falecimento, em 1965, Milcíades Peña não pode participar nessa verdadeira revolução epistemológica.

4. A Estância Pastoril Colonial e Pós-Colonial como Forma de Produção Pré-Capitalista

No Uruguai, equipe de historiadores ligados ao Partido Comunista Uruguaio, em uma ampla e sistemática investigação historiográfica, terminariam dissociando-se das teses sobre o caráter feudal ou semi-feudal da produção pastoril, para enfatizar seu caráter pré-capitalista. Em de La oligarquia oriental en la Cisplatina, de 1967, Rosa Eloy, Lucia Sala Touron, Nelson De La Torre e Julio Carlos Rodrigues foram explícitos no relativo a essa definição da produção pastoril, ao lembrar que, “en las regiones ganaderas”, “al expirar la dominación colonial no se había completado todavia la apropriación de los medios de producción ni el sometimiento al peonazgo de las masas rurales.”[36]

Em El Uruguay comercial, pastoril e caudillesco, esses autores descrevem situação que se manteve décadas após o fim da colônia, não apenas na Banda Oriental. Realidade que dificultou a transformação do gaucho em peão, ou seja, do homem livre sem posses em trabalhador assalariado permanente: “Dueños de caballo, lazo y cochillo, no estaban privados de sus instrumentos de trabajo y tampoco de médios de vida, ya que podrían porporcionárselos com facilidad faenando animales que poblaban la campana casi deserta, sin cercos ni custodia efectiva.”

Uma situação que, no Uruguai dos inícios dos anos 1830, levou don Fructuoso Rivera [1784-1874], em resposta a reivindicação dos criadores orientais [em boa parte, sul-rio-grandenses estabelecidos no norte desses territórios], a realizar ampla campanha militar e policial para reprimir a população rural independente – changadores, faeeneros, gaúchos, posseiros, charruas, guaranis, etc. – a fim de obrigá-la a se assalariar como peão. Um processo que seria concluído apenas décadas mais tarde, no final do século 19. [37]

Na Europa e nos Estados Unidos

Esses mesmos autores lembravam que, em inícios do século 19, a produção capitalista, ainda reduzida às “zonas atlánticas europeias” e aos Estados Unidos, buscava “colocar sus producciones em América Latina” onde predominavam “en las distintas formaciones relaciones sociales de producción precapitalistas.” Avançam no mesmo sentido que, nas duas margens do Prata, nas décadas posteriores à Independência, dominam ainda as oligarquias comerciais, os estancieiros, os charqueadores “basicamente precapitalistas”. Realidade que permitiu “acumulación originaria” que apoiaria a constituição e dominância posterior de relações capitalistas de produção, a partir de inícios do século 20. [38]

Foi importante passo analítico a definição geral da fazenda pastoril, como forma de produção mercantil pré-capitalista, a partir de suas características essenciais, sobretudo no que se refere às forças produtivas materiais e as relações de sociais de produção. Processo que superou, nesse domínio, o impasse posto pela disjuntiva feudalismo & capitalismo, nascida de forte acomodação de realidades sociais singulares a esquemas teóricos estranhos a elas, em boa parte devido a pressupostos político-ideológicos, como proposto.

Uma caracterização geral daqueles autores que não elide a ainda necessária definição categorial-sistemática das formas de produção assumidas pela produção pastoril extensiva pré-capitalista, de importante dinamismo e longevidade no sul da América. Definição que precise em forma mais acabada as leis internas tendências dessa forma de produção, por séculos hegemônicas nesses territórios. Nesse ensaio, limitaremo-nos a descrever apenas algumas características essências da produção pastoril pré-capitalista extensiva.

Algumas Características Essenciais

Após o ciclo extrativista do couro, durante anos, as estâncias chimarrãs, orientadas sobretudo à produção do couro, organizaram-se com a apropriação-expropriação extra-econômica: 1) da terra, meio de produção sem valor mas desde sempre com preço, devido à sua monopolização privada garantida pelos Estados coloniais ibéricos; 2) do gado chimarão, nascido da reprodução selvagem dos rebanhos introduzidos na região sobretudo pelos espanhóis. Terra e gado expropriados em boa parte ao domínio de comunidades nativas. Um movimento apoiado na força de trabalho dos estancieiros e de seus familiares e. sobretudo, de peões e de trabalhadores escravizados.

A fazenda chimarrã, comumente de grandes dimensões, exigia pouco trabalho, em geral limitado à reunião dos animais para a produção do couro, realizada em geral sur place. Mantinha habitualmente um número de trabalhadores superiores às necessidades produtivas, que protegiam a propriedade dos ataques e garantiam a posse da mesma. Essa mão-de-obra excedente era paga em boa parte pela produção das estâncias não transformada em mercadoria – carne, couro, sebo, etc.

 Nos anos 1780, com o advento das charqueadas, no Rio Grande do Sul e na Banda Oriental, a fazenda chimarrã deu lugar, em forma crescente, à fazenda crioula ou de rodeio, em geral de menor porte, em relação à anterior, dedicada à criação do gado mais ou menos costeado, pelo couro, carne, sebo, graxa, cabelo. Apesar de exigir trabalho mais intensivo – castração, marcação, rodeio, etc. –, essa forma de produção expulsou tendencialmente a população excedente, devido à valorização dos gados, ainda que transformados ainda não totalmente em mercadoria.

As fazendas chimarrã e de rodeio utilizavam a força de trabalho dos proprietários e seus familiares, de cativos, de posteiros, de moradores, de agregados, de peões permanentes ou temporários. Essa mão-de-obra era remunerada com os meios de subsistência (trabalhadores escravizados); com os meios de subsistência e algum salário monetário (peões); com o direito ao uso da terra (posteiros e moradores), etc. Durante décadas, a coerção social foi importante meio de submeter os homens livres ao trabalho nas estâncias.

Renda Fundiária

A renda do estancieiro, obtida sobretudo através da venda do couro, carne, sebo, etc. dos animais, subdividia-se em renda da terra e renda do trabalho. A primeira, de caráter netamente pré-capitalista, originava-se em outras esferas da produção e era apropriada pelo estancieiro, devido ao monopólio da terra, condição especial de produção de caráter finito. Ao contrário, a renda do trabalho provinha do trabalho excedente produzido pelos produtores diretos – trabalhadores escravizados; trabalhadores livres remunerados; posteiros e moradores, etc.

As tarefas pastoris eram realizadas por trabalhadores livres e escravizados, através de atos produtivos isolados ou coordenados, apoiados na habilidade do manejo de meios de produção [cavalo, laço, etc.] e instalações produtivas [galpões, bretes, etc.] muito simples, de fácil confecção e, durante longo tempo, de fácil apropriação. Na fazenda de rodeio, as principais práticas produtivas limitavam-se à domesticação, à marcação, à castração, à cura rudimentar dos animais. A maturação do produto dependia fortemente das condições ambientais – chuvas, temperatura, aguadas, pastos nativos, etc.

Nessa forma de produção, eram limitadas as possibilidades de aumentar o sobre-trabalho dos produtores diretos estendendo o tempo e a intensidade da jornada produtiva. Em forma geral, por longo tempo, a expansão da produção da fazenda chimarrã ou de rodeio deu-se quase exclusivamente através da incorporação de novas áreas produtivas, novos rodeios e novos trabalhadores. As grandes, médias e pequenas propriedades pastoris praticamente não diferiam no relativo às práticas produtivas e à produtividade.

No Rio Grande do Sul, apenas em inícios do século 20, em atraso em relação ao Uruguai e a Argentina, a atividade pastoril começou a introduzir-se na esfera de produção capitalista. Então, no contexto de uma crescente divisão do trabalho [cabanha; criadores; invernadores, etc]; desenvolvimento das forças produtivas [banheiros; pastagens artificiais; cercas de arame; centro de manejo; inseminação artificial, etc.]; especialização dos trabalhadores [peões; alambradores; inseminadores; veterinário; tratoristas, etc.], a renda do capital começou a sobrepor-se à renda da terra, que se manteve e mantém, porém, seu peso significativo.

Esse processo realizou-se lentamente, sendo que ainda hoje subsistem estâncias dedicadas à criação semi-extensiva, através do pastoreio contínuo. A fazenda pastoril propiciou parte importante da acumulação originária de capitais que na Argentina, no Uruguai e no Rio Grande embasou o processo diferenciado de industrialização conhecido por essas regiões, hegemônico apenas a partir das primeiras décadas do século 20. Mesmo que a estância tenha alimentado a produção manufatureira e industrial capitalista, os estancieiros não foram os principais protagonistas dessa metamorfose.

II. MILCÍADES PEÑA: IMPASSE DA FORMAÇÃO NACIONAL ARGENTINA

Em El Paraíso terrateniente, Milcíades Peña retomou a crítica à proposta feudal e semi-feudal para a Argentina, propondo que o peão fosse já um assalariado claramente capitalista. “Feudal, o de rasgos feudales, podía ser la modalidad con que el patrón estanciero castigaba o recompensaba a sus peones. Pero la esencia económica de essa relación era capitalista, era la relación contractual entre el proletario carente de medios de producción y el propietario de la estancia que alquilaba la fuerza de trabajo del peón a cambio de un salario.”[39]

Destaque-se que formas de coerção física à produção caracterizam relações servis ou semi-servis de produção, não necessariamente escravistas ou feudais. E não podemos esquecer que uma característica básica do gaucho era sua capacidade de subsistir, por longos períodos, sem vender sua força de trabalho. Isso devido à incapacidade dos proprietários da Argentina, do Uruguai e do Rio Grande de separá-lo radicalmente das condições necessárias à produção dos seus meios de subsistência – o cavalo, o laço, as boleadeiras, o gado chimarrão, os campos não cercados, etc.

 Naquele trabalho, lembra que, mesmo no relativo aos vice-reinados, a unidade da América Hispânica colonial era exterior e artificial, produto de ação política determinada pelas necessidades da defesa e do monopólio comercial metropolitano. O próprio vice-reinado do rio da Prata [1778] reunia um enorme território, transpassado social e economicamente por fortes tendências centrífugas – atuais Argentina, Bolívia, Uruguai e Paraguai. Peña define como mito histórico a narrativa sobre a unidade hispano-americana perdida, que propõe como inevitável, devido à falta de laços econômicos comuns. Porém, lembra que, no processo de independência, poderiam ter nascido nações mais portentosas. Propõe a gênese de um Estado federativo poderoso, os Estados Unidos da América, quando da ruptura das colônias britânicas da América, como produto dos interesses de uma “indústria” que, mesmo incipiente, criara mercado interno que necessitava conservar e expandir.[40] A essa razão, juntaríamos outras, como a necessidade de suas classes dominantes de defrontar a poderosa ex-metrópole e subjugar as classes subalternizadas. [41]

Segundo Milcíades Peña, na América Hispânica, ao contrário, dominavam “interesses capitalistas” orientados ao mercado mundial – a oligarquia comercial e os produtores de matérias-primas: couros, minerais, etc. Porém, lembra que os grandes comerciantes portenhos [que define como “burguesia comercial” em sentido estrito] interessavam-se, sim, pela formação de mercado nacional, para uma mais ampla introdução de bens estrangeiras, e não para a realização da produção nacional de qualquer tipo. “ Lo trágico [...] era que los elementos del desarrollo capitalista baseados em el mercado interno, es decir, en el desarrollo interior de la nación, eran nulos, ya que todos los intereses capitalistas se orientaban hacia la exportacion y eran esencialmente portuários.” [42] Uma visão da impossibilidade de construção de uma grande nação ibero-americana, devido à “inexistência de las bases materiales y espirituales” concorrente com a dos historiadores uruguaios Lucia Sala de Touron e Rosa Alonso Eloy. [43]

As classes ibero-americanas interessadas no mercado interno seriam sobretudo “pequeños productores atrasados, destinados a desaparecer ante la competencia de las muy superiores industrias europeas”, como era o caso da “industria artesanal del interior argentino”. Uma das teses centrais do brilhante ensaísta foi a inexistência até o século 20 de classe apontando para a industrialização da Argentina.[44] Ele criticava igualmente a tese de independência ibero-americana prematura, vista a incapacidade das nações surgidas da ruptura com a metrópole de industrializarem-se. Propunha que a ordem colonial era já parasitária, nada mais tendo a oferecer às colônias. Segundo ele, em 1810, a Independência ensejaria a única forma em que a iberoamérica “podia evolucionar”. Ou seja, como “apéndice económico da Europa, abastecedor y consumidor de la industria inglesa”. Propõe que haveria progresso na transição de “colônia” em “semicolonia económica”.[45]

Milcíades Peña liquida a possibilidade de desenvolvimento autônomo, apresentando a dependência da ex-colônia à industria inglesa como avanço histórico. Mesmo sendo está última agente da destruição da produção artesanal, doméstica e pequeno-manufatureira americana. Uma leitura que define como marxiana: “Marx consideraba progresiva esa subordinación”. Lembra que os USA conheceram tal dependência, para superá-la, a seguir. Apóia-se nas páginas clássicas onde Marx descreve o processo avassalador, no plano humano, mas progressivo e inevitável, em sentido histórico geral, da penetração dos tecidos ingleses no mercado indiano, com a conseqüente destruição da produção artesanal tradicional do país, incapaz de concorrer com os produtos industrializados. [46] Mais tarde, como veremos, Milcíades Peña matiza sua proposta sobre a inexorabilidade da dependência, como caminho para a independência econômica.

Progresso e Regresso

Milcíades Peña defende que, devido ao “primitivismo de sus métodos de producción”, o artesanato e a pequena manufatura tinham “escasa posibilidad de supervivencia” diante das mercadorias importadas, que realizaram obra progressiva, ao destruí-la.[47] Propõe que uma política de defesa alfandegária seria nociva ao desenvolvimento social e histórico regional. Que não existia na América Ibérica “indústria moderna”, quando da Independência, mas apenas “industria doméstica”, como a do interior argentino e da província de Buenos Aires. E ela não seria um “resorte propulsor de cultura sino de atraso, ya que sólo podia sobrevivir a condición de frenar el desarrollo capitalista de las industrias agropecuárias del litoral, las únicas que en las condiciones de entoces podían permitir una rápida acumulación de capital nacional.” [48]

Destaque-se que sua proposta apóia-se e se sustenta na caracterização como capitalista da produção agropecuária dos anos da Colônia e da Independência, como já destacado.

Milcíades Peña liquida inapelavelmente as proposta protecionista da produção artesanal e pequeno-manufatureira do interior argentino: “La protección a las industria artesanales del interior hubiera sido ajustar el galope tendido del litoral hacia la acumulación capitalista al lento paso de mula de la industria del interior.” [49] Desqualifica a valorização dessa produção empreendida pelo historiador Abelardo Ramos, em América. “[...] no hay ni una molécula de verdad en la afirmación de que la industria artesanal del interior tendía ‘a crear un estado histórico y económicamente nacional’”. [50] Apesar do sentido demiúrgico dado à produção pastoril do litoral, não realiza apologia desta última e enfatiza a importância da industrialização propriamente dita. Para ele, a “función de la industria” como “resorte propulsor de la cultura moderna” não necessitava ser demonstrada. Critica a apologia do mundo rural de José Hernandez no célebre poema Martín Fierro. [51]

Para Milcíades Pena, as classes que, mesmo limitadas historicamente, realizaram a “acumulação capitalista” no Litoral, que defendia como progressista, em relação à produção “artesanal do interior”, historicamente regressista, eram, como proposto: a “burguesia comercial” e a “burguesia ganadera”. Na Argentina, na visão de Milcíades Peña, a “burguesia comercial” era formada pelos grandes comerciantes portenhos, após a Independência sobretudo crioulos, que lutavam para manter, na nova ordem, o monopólio do porto de Buenos Aires sobre o Prata, antes assegurado pelo exclusivismo colonial. Seria uma classe voltada para o exterior, pois dependente da venda dos manufaturados que interiorizava e das matérias-primas que exteriorizava. Porém, a ela, interessava a formação de mercado nacional, através da submissão das províncias argentinas do Litoral e do Interior ao porto de Buenos Aires, para mais ampla e rendosa distribuição das mercadorias inglesas e exportação das nativas. Era um segmento social incondicionalmente liberal e livre cambista, sem vinculações com a produção, como já visto.

Capitalismo Pastoril

Para Milcíades Peña, era sobretudo a “burguesia ganadera” que impulsionava a acumulação capitalista, ligada estreitamente à produção. Portanto, não se tratava de mera “acumulação originária de capitais”, de cunho pré-capitalista, mas produção capitalista propriamente dita. A “burguesia ganadera”, mesmo participando das visões livre-cambistas da “burguesia comercial”, não comungava a proposta desta última de conformação de mercado nacional, insatisfeita com os gastos que a política exigiria, sem lhe trazer vantagens, pois vendia seu charque e couros no exterior. “Pero aquella [burguesia comercial] pretendia unificar a todo trapo el país para ensanchar así el mercado interno con el cual ella lucraría colocando las mercadorias que importaba de Europa, sin preocupar-se demasiado de la suerte de los ganaderos bonaerenses. Los estancieiros, en cámbio, no tenían interés en ariesgar un solo centavo de sus ganancias en prol de la unificación nacional.” Estavam mais interessados em reprimir os índios pampas, para expandir suas estância em direção ao interior.[52]

Em oposição à burguesia comercial e pastoril-charqueadora da província de Buenos Aires, definidas como capitalistas, levantavam-se sobretudo as classes ligadas às formas de produção pré-capitalista do Interior, com destaque para a produção doméstica, artesanal e pequeno-manufatureira e para as populações gaúchas, que se mobilizavam contra o liberalismo portuário e a produção charqueadora que destruíam suas formas de produzir e viver. “La política de la oligarquía porteña era, en síntesis, ampliar y profundizar su acumulación capitalista, mientras que todo el resto del país deseaba proseguir tranquilamente repreduciendo el modo de producción y de vida existentes.”[53]

Segundo Milcíades Peña, os grandes estancieiros do Litoral, com destaque para os de Entre Rios e Corrientes, apoiavam e se apoiavam nas facções sociais do Interior, contra a oligarquia comercial e pastoril de Buenos Aires, que impunha o monopólio portuário e se negava a nacionalizar as rendas alfandegárias. O privilégio portuário valorizava a produção charqueadora da província de Buenos Aires, em detrimentos dos charqueadores das províncias do Litoral. O monopólio das rendas portuárias deixava literalmente as províncias do Interior à mingua, pois o export-import era a única grande renda pública. A contradição entre as principais classes sociais do Litoral-Interior e de Buenos Aires, por um lado, e entre criadores-charqueadores e comerciantes desta última província, por outro, originariam as duas grandes correntes políticas que determinaram no essencial os confrontos sociais e a formação do Estado argentino: os Unitários e os Federalistas.

Em 1810, a Revolução de Maio nasceu e se consolidou sob a hegemonia da oligarquia comercial portenha, que se mobilizou, como assinalou Juan Bautista Alberdi [1810-1884], para se libertar da autoridade metropolitana de Espanha e de seus tributos e contra a “autoridad de la Nación Argentina”, que pretendia substituir o “coloniaje español” pelo portenho. Milcíades Peña assinala igualmente que “Revolução de Maio” fora literalmente uma “doble declaración de guerra”: pela independência, contra a Espanha e pelo domínio do vice-reinado do rio da Plata, contra as províncias, como assinalado. [54] Durante o primeiro período pós-1810, a “burguesia comercial” portenha comandou o processo de conformação do Estado nacional, contra os interesses provinciais, que exigiam a proteção da produção doméstica, artesanal e pequeno-manufatureira e a nacionalização das rendas portuárias. Ela contou com o apoio dos estancieiros e saladeiristas bonaerenses, igualmente favoráveis ao livre câmbio e ao monopólio do grande porto. “Había [...] un claro antagonismo entre Buenos Aires y el Litoral por un lado, interesados en exportar los productos de su ganaderia y comprar en cambio los productos extranjeros, y por lo tanto librecambista, y del outro lado el Interior, carente de productos exportables, pero poseedoer de una rudimentária industria abastecedora del mercado interno, para quien la libre introduccion de productos extranjeros significab a la ruína.”[55]

O Advento do Rosismo

Para Milcíades Peña, durante esses anos de convergência, “burguesia comercial” e “burguesia ganadera” de Buenos Aires impulsionaram a acumulação e a estrutura capitalistas argentinas nascentes, fazendo recuar as sobrevivências pré-capitalistas. “La oligarquia porteña, comerciantes y estancieros coincidían – con diferencias de táctica – en afiançar la estructura capitalista de la nación a costo de todos los elementos precapitalista. Su proposito era liquidar al gaucho privandolo de libre usufructo de la carne y obligandolo por la fuerza a proletarizarse, empleándose en estancias o saladeros.”[56] Portanto, reconhece que a proletarização do gaúcho, transformado em peão, era um objetivo perseguido pela “burguesia ganadera” e ainda não consumado.

Essa orientação histórica, ou seja, a destruição da produção pré-capitalista das províncias do Interior, pela produção dita capitalista do Litoral, apesar de ser, na visão do autor, historicamente progressista, causava imensos sofrimentos à população do Interior: “[...] la política de la oligarquía porteña era la política de la ‘civilización’ es decir, tendía a construir una civilización basada en la producción de alimentos y materias primas para el mercado mundial, con todas las restantes actividades del país subordinadas a esta. La mayoría del país no tenía nada que ganar y sí mucho que perder con el advenimiento de tal civilización, y es comprensible su oposición a ella.” [57]

O que ensejaria, para Milcíades Peña, por longas décadas, uma oposição histórica verdadeiramente regressista das massas populares do Interior, sobretudo através das montoneras, forma de luta das massas gaúchas subalternizadas. “La montonera conjugó en su seno al gauchaje del litoral, privado de su tradicional modo de vida por la valorización de la carne que trajo consigo el comercio libre, con los más variados sectores de la población del interior, destruidas sus fuentes de subsistencia por la competencia inglesa.” Dirigidas por caudilhos das classes dominantes, as montoneras seriam, para Peña, movimentos restauradores que, apesar de democráticos, por representar a maioria do país na luta contra a oligarquia de Buenos Aires, não possuíam cunho democrático-burguês, ao não mobilizarem-se pelo domínio e expansão da ordem capitalista. Uma contradição entre “movimento democrático” e “democrático-burguês” que se deveria, para o autor, ao fato de que, a “estrutura de la colônia había sido decisivamente capitalista [Buenos Aires], pero con grandes sectores precapitalista [Interior].” Portanto, deduzia, também, o caráter não progressista da luta das classes subalternizadas da definição como capitalistas das oligarquias comercial e pastoril da província de Buenos Aires. [58]

Milciade Peña não via qualquer possibilidade de superação social das massas urbanas do Interior, incorporadas à pequena produção mercantil doméstica, artesanal e manufatureira dos pequenos burgos, ou às comunidades gaúchas da campanha. “Las masas montoneras querían, desde luego, pan. Y precisamente engrosaban la montonera porque las antiguas modalidades de producción estaban destruidas y no podían ya ganarse su pan como tradicionalmente lo hacían. Pero ‘tierra’ no buscaban ni les interesaba. A los gauchos del Litoral ofrecerles una parcela hubiera sido insultarlos.”[59]

Uma proposta que se justificaria, ainda que muito parcialmente, se consideramos “parcela de terra” como um lote destinado exclusivamente à agricultura, produção relativamente à margem da experiência social de parte da população gaúcha. Efetivamente, uma pequena horta de subsistência fazia parte comumente do “modo de produção gaúcho”. [60] Porém, a proposta de Milcíades Peña mostra-se profundamente contraditória considerando-se o dinamismo social que poderia ter assumido a mobilização das massas gaúchas, no caso do oferecimento, não de um “lote de terra”, mas de uma “suerte de estância”, como proposto, em fins do século 18 inícios do século 19, na Banda Oriental, quando do chamado “arreglo de los campos”.

Revolução Artiguista

A proposta democrático de legalização e distribuição de terras, entre a população subalternizada [gaúchos, índios, crioulos pobres, negros livres, etc.], objetivava estrutural produção pastoril de subsistência, capaz de produzir o suficiente para o consumo e para a venda necessários para a manutenção de uma unidade familiar. Ela foi avançada pela administração colonial e implementada, em forma limitada, no fim do período colonial, sobretudo na Banda Oriental. O principal agente desse projeto reformista da administração hispânica foi o militar, engenheiro, naturalista e geógrafo espanhol Félix de Azara [1742-1821]. Esse projeto pretendia criar um cinturão de pequenos proprietários que pusesse fim à expansão luso-brasileira. Quando da luta pela Independência, por longos anos, essa proposta galvanizaria em forma radical e ampla os deserdados dos campos na Banda Oriental.

A democratização da propriedade da terra foi parte integrante da luta pela independência federativa das províncias do Prata. Combate dirigido por José Artigas [1764-1860] contra a oligarquia comercial e fundiária oriental e portenha, até ser derrotado pela conjugação das forças dos grandes proprietários da Banda Oriental, da Argentina e do Império. Lamentavelmente, Milcíades Peña não aborda essa questão, amplamente desenvolvida em um sentido inovador, no outro lado do rio da Prata, pelo grupo Práxis, formado por brilhantes historiadores ligados ao Partido Comunista Uruguaio.

Em Artigas: tierra y revolución, trabalho sintético de 1967, aqueles autores propõem sobre o célebre “Reglamento provisório de la província Oriental para el fomento de su campana y segurida de sus hacendados”, de 10 de setembro de 1815: “El reglamento aparece pues, como el programa económico-social de la revolución, enderezado a cortar el nudo principal de las contradicciones que atenazaban la sociedad criolla: el problema de la proprieda de la tierra y el de la producción ganadera. Y al mismo tiempo, se dirige a asentar sobre la tierra a los pobres del campo, creándoles las condiciones para su benestar y trabajo libre, y a erradicar las viejas y ahora parasitarias y contrarrevolucionárias formas de existencia marginales de la producción: bandidismo, contrabano, corambre, etc.” [61]“[...] el Reglamento Provisório de 1815 fue la más avançzada y gloriosa ley que tuvieron los orientales. La confluencia en un solo haz de la revolución nacional anticolonial, democratica, republicana y federalista con la revolución social dispoensadora de tierras y enaltecedora de la dignida humana transformó a la montonera oriental en el más formidable y peligrosos de los ejércitos: el de los hombres que viven y mueren por un ideal.” [62]

Uma revolução nacional-democrática que, ao apoiar-se nas necessidades objetivas de amplos segmentos sociais subalternizados – gaúchos, negros, cativos, índios, etc. –, soube-lhes ganhar a confiança e o apoio, acaudilhando-os na longa e dolorosa resistência diante das classes proprietárias [pré-capitalistas] associadas da Banda Oriental, de Buenos Aires e do Império do Brasil.[63] Em La oligarquia oriental em la Cisplatina, os autores citados lembram precisamente que a síntese entre uma liderança conseqüente, o programa democrático-burguês de distribuição de terras aos deserdados do campo e às camadas sociais plebéias, aos quais interessavam aquelas medidas revolucionárias, resultaria em um outro “modelo de montonera”. Uma montonera que estabeleceria um “novo modo de relaciones entre caudillos y massas: las relaciones libres entre hombres livres trabajadores directo de la tierra”. [64] As razões da derrota de revolução democrático-radical na Banda Oriental e da sua frustração na Argentina são históricas, não havendo empecilho ou impasse estrutural para esse movimento. Segundo os autores uruguaios citados, essa derrota fez retroceder a revolução democrática radical, impondo a hegemonia sobre a Banda Oriental dos setores oligárquicos comerciais de Montevidéu, representantes dos grandes capitais europeus e dos grandes proprietários fundiários, impedindo a hegemonia de sociedade e produção capitalista por décadas.[65]

Para Milcíades Peña, tamanho seria o caráter retrógrado da produção artesanal, doméstica e pequeno-manufatureira interiorana que ela ameaçaria a própria unidade argentina em formação. Visão que deixa nas mãos da burguesia comercial e pastoril o futuro nacional argentino, apesar do alcance historicamente restritivo dos projetos dessas classes. No contexto da interpretação que desenvolveu, Milcíades Peña não encontra saída dialética para a história da antiga formação social argentina, pois a ordem capitalista que propõe não produzia e reproduzia antagonicamente a classe que explorava, destinada historicamente a lhe servir de coveira. Em momento algum o autor aponta o proletariado rural, ou seja, os peões, na sua interpretação surgidos da produção capitalista pastoril, como classe protagonista na história argentina e portadora de projeto democrático e revolucionário.

“Era una verdadera tragedia que las industria criollas, notoriamente atrasadas, para conservar sus reducidos mercados locales, debieron fragmentar al país renunciando así a construir el gran mercado nacional. Porque éste debía fatalmente ser controlado por la burguesía porteña, y ello significaba el librecambio, es decir, entregar el mercado nacional a la industria inglesa.” “La historia no brindaba ninguna salida para este circulo de hierro.” [66] Já no século 19, quando se estabeleciam objetivamente tais contradições, haveria plena consciência da oposição entre os interesses do Interior e das classes liberais importadoras. Ideólogos federalistas lembravam que a vitória de Buenos Aires sobre o Interior significaria a estagnação e “miles y miles” de indivíduos sem nenhuma ocupação. Entretanto, para Milcíades Peña, não havia solução para essa contradição: “[...] el desarrollo de la acumulación capitalista – de la civilización capitalista en la única forma en que podía darse en aquel momento en la Argentina, es decir, como capital semi-colonial, atrasado y agropecuario y comercial, determinaba fatalmente una política oligárquica y antidemocrática. El desarrollo capitalista en la Argentina no conducía a la democracia, sino a la oligarquía.” [67]

Como lembraria Marx, “Inglaterra aspiraba a ‘convertir a todos los demás países en simples pueblos de agricultores, reservándose ella el papel de fabricante’”. Seria a profunda concordância de interesses entre a indústria e as finanças inglesas e esse padrão de desenvolvimento capitalista semi-colonial argentino, meramente importador de manufaturados e exportador de matérias-primas, que permitiria a “penetración y la influencia británica en el país”.[68] Movimento interpretado diretamente por Bernardino Rivadávia [1826 -1827], primeiro, e, por Juan Manual de Rosas [1793-1877], a seguir. Milcíades Peña assinala o caráter explorador dessa fase pré-imperialista do capitalismo, na qual a dominação dava-se através da venda de manufaturados e compra de matérias-primas, através de trocas desiguais. Os couros argentinos eram comprados, nos campos, por uns 3,5 peniques por libra, para serem vendidos em Buenos Aires, por 5,5, três meses mais tarde. Passado meio ano da produção, o produto era arrematado, em Londres, curtidos, por 9 a 10 peniques. No torna-viagem, uma bota, feita com o couro bonaerense, custava, em Buenos Aires, em torno a vinte novilhos! [69]

Couros e Charques

Os criadores bonaerenses, ligados à produção, exportavam couros e charque e importavam manufaturados e alimentos, em parte do interior. Eram livre-cambistas e não possuíam visão nacional. Os comerciantes portenhos, representantes do capital comercial e industrial inglês, desligados da produção, mobilizaram-se desde 1810 pela reconstrução do vice-reinado, para restabelecer o monopólio da exportação e importação de mercadorias. Portanto, necessitavam unificar o país. Representante dessas forças, o unitarista Rivadávia, na presidência do país, pretendeu colonizar o pampa e desenvolver a agricultura, para impulsionar o comércio interno, pois a fazenda pastoril pouco consumia. Ele sempre respeitou religiosamente os interesses ingleses, entregando imensas terras públicas em enfiteusis, para garantir o emprestado pelos banqueiros ingleses. [70]

A política geral de Rivadávia desagradava os criadores bonaerenses. Ele se voltava para o futuro, enquanto, no presente, os “indios conquistaban la provincia de Buenos Aires y el gauchaje se alzaba más que nunca contra la obligación de conchabarse en estancias y saladeros.” Porém, nesses anos, acelerou-se a apropriação privada das terras públicas. Entre 1822 e 1930, “538 proprietarios obtuvieron por lo menos 8 millones seiscientos mil hecares”, pagando ao Estado pouco mais de cinco mil pesos, em todo. No frigir dos ovos, lembra Milcíades Peña, o “unitarismo significaba disponer de los fondos de la aduana porteña para una política nacional manejada desde Buenos Aires. [...] aumentar los impuestos que recaían sobre los estancieros. Por otra parte, el programa de centralización, en la medida en que prometía eliminar las aduanas interprovinciales y hacer accesible a los artículos extranjeros todo el mercado interno, expresaba en términos políticos los intereses de todos los vinculados a la expansión del comercio interno y externo.”[71]

 Ao ditar a lei da capitalização, o unitário Rivadávia ensejou que os estancieiros se transformassem em federalistas. “Y los estancieros y saladerista bonaerenses eran enemigos irreductibles de los impuestos en general y de los impuestos a la exportación en particular.” “Además, era probable que en un régimen unitario el gobierno central dedicaria su tiempo y recursos al desarrollo del interior”, isso para “expandir los mercados internos y ligarlos a Buenos Aires y a otros puertos”, “más que a continuar el programa de expansíon territorial hacial el Sur”, como necessitavam os criadores de Buneos Aires, sob a impulsão da produção charqueadora. Os criadores opunham-se também à imigração colonial-camponesa. [72]

As províncias do Interior defenderam-se do exclusivismo portuário estabelecendo tarifas especiais, alfândegas de trânsito, taxas diferenciais, etc. Essa ação autonomista foi apoiada pelos estancieiros bonaerenses, que queriam o federalismo para manter sob controle o porto e a oligarquia comercial. A aliança entre os estancieiros bonaerenses e as províncias poria fim ao governo quase exclusivo da oligarquia bonaerense, que procurava mercado nacional e empobrecia o Interior. As classes subalternizadas, entre elas os gaúchos, que resistiam à proletarização e ao arrolamento militar, apoiavam a resistência federalista ao liberalismo portuário invasor. Milcíades Peña lembra que, nessa aliança, dominaram os estancieiros de Buenos Aires, segundo ele, capitalistas.[73] Desse processo surgiria a ditadura. “Rosas constituye una etapa decisiva en el desarrollo del capitalismo argentino, tal cual es, vale decir, capitalismo atrasado, semi-colonial, esencialmente agropecuario.” “Rosas pertenecía – y era uno de los más poderosos integrantes – a esa clase capitalista nacional; capitalista, pese a toda la charlatanería que pretende asignarle un carácter ‘feudal’.” “[…] Rosas contribuyó a desarrollar e hipertrofiar – como convenía a su clase – la principal actividad capitalista del país, es decir, la estancia y el saladero.” [74] Haveria, portanto, unidade essencial entre os períodos da história argentina, antes, durante e após o rosismo – todos seriam etapas do desenvolvimento do capitalismo no país.

Preocupados com o que Interessava

Segundo Milcíades Peña, Rosas e os estancieiros não se preocupavam em criar um mercado nacional, mas em desenvolver, como apenas proposto, a produção capitalista pastoril-saladeira dominante. Não havia razão para seguirem outro caminho. O governo rosista impulsionou a monopolização do gado para o saladeiro; impediu tributação da propriedade fundiária; escorraçou os nativos pampas, para permitir a expansão da fazenda; acelerou a transformação do gaúcho em peão. O primeiro saladeiro de Rosas iniciou seus trabalhos em novembro de 1815. No mesmo ano, ditava-se o decreto: “Todo hombre de campo que no acredite tener propiedades legítimas o tierras de qué subsistir, será reputado sirviente, y obligado a llevar papeleta de conchabo de su patrón, visada cada tres meses por el juez de paz, so pena de declarársele vago y castigado con cinco anos de servicio militar obligatorio, o, si no sirviera para ese destino, con dos años de conchabo obligatorio a cargo de un patrón, la primera vez y de diez anos la segunda, en caso de reincidencia.”[75] Medida orientada a criar, através de coerção extra-econômica, mercado de trabalho livre, devido à falta de condições históricas para que os produtores diretos fossem obrigados a vender a força de trabalho por razões meramente econômicas, como assinalado.

Para manter o monopólio do porto de Buenos Aires, que produzia rendas e vantagens diferencias para os saladeiros bonaerenses, Rosas lutou contra a França, que pretendeu impor seu poder mercantil desde Montevidéu. O bloqueio francês do porto de Buenos Aires favoreceu a economia das províncias litorânea e a produção manufatureira do interior. Em 1849, Rosas acertou com os ingleses o respeito ao monopólio de Buenos Aires e à navegação dos rios interiores, lançando o Litoral na miséria.[76] Milcíades Peña assinala que “Rosas fue el primer gobernante argentino que sustentó su poder con una hipertrofia de ejército de línea, que es el enemigo nato del gaucho, de sus correrías y sus montoneras. Las rentas de la aduana porteña le permitieron mantener en pie de guerra cuatro ejércitos de línea.”[77] O que permitia aos criadores bonaerenses uma administração menos contemporizadora em relação às populações gaúchas da província que se refugiavam numerosas entre os nativos pampas e na Banda Oriental.

Peña destaca igualmente o “temperamento cavernícola” de Rosas, definindo-o como reacionário até a medula, lembrando sua militância contra “la enseñanza libre, contra el divorcio, contra el liberalismo, [...].”[78] Um perfil que destoa fortemente de líder burguês-capitalista, mesmo colonial. Para o autor, o “antiliberalismo, el clericalismo, el oscurantismo” de Rosas era sobretudo “política ideológica para mantener el orden y evitar trastornos a lo poseyentes.”[79] Intuindo a contradição de sua proposta, procura impugnar os argumentos daqueles que estranhavam governo capitalista que não apoiava minimamente a indústria. “Y si sólo calificásemos como capitalista a los gobiernos que contribuyeron a desarrolar el capitalismo industrial, entonces resultaría que hasta 1900 no hubo entre nosotros ningún gobierno que estimulase el desarrollo capitalista del país.”[80] O que, diga-se de passagem, por além da data apenas referencial, é correto, para a Argentina como para o Brasil.

Mercado Interno e Industrialização

Milcíades Peña polemiza com a historiografia que via a oligarquia comercial portenha como uma classe que se esforçava para industrializar o país e, na enfiteuses, estratégia para controlar o avanço dos estancieiros. Lembra que, para os comerciantes, industrializar o país era liquidar-se como importadores. Uma solução de caráter lógico para uma questão histórica. Nas Américas, comerciantes usaram comumente o controle dos mercados e a acumulação mercantil de capitais [pré-capitalista] para produzirem e vender as mercadorias que antes importavam.

Aquele historiador ajunta que os comerciantes queriam unificar o país apenas para melhor introduzir monopolicamente os produtos estrangeiros, não lhes interessando a “conquistar o deserto”, pois a expansão da produção pastoril pouco lhes seria vantajosa. Para Peña, se o viés nacional da “burguesia comercial” era anti-industrialista, o industrialismo da “burguesía estanceril” seria anti-nacional: “[...] los estancieros y saladerista bonaerense, clase indudablemente nacional por su vinculación a la producción del país [sic], en la cual se basaba su poderío, era cerradamente localista y en tanto conservaba su puerto único con su correspondiente aduana privilegiada, se desentendía del resto do país siempre y cuando éste vegetara pasivamente sin pretender quebrar el monopolio porteño del puerto y de producto de la aduana.”[81]

Por sua vez, os “productores artesanales”, a única classe que almejaria o desenvolvimento da produção interna, mobilizavam-se pelo “estancamiento protegido de sus atrasadas empresas.” Uma situação que teria determinado, segundo o autor, verdadeiro impasse histórico: “El círculo estaba cerrado y no había dentro del país ninguna fuerza que tendiera a romperlo, aunquando el interés en la producción nacional a la creación de un mercado interno nacional.” Porém, o autor propõe salto para frente da produção capitalista pastoril-charqueadora com o fim do rosismo, que teria expressado a autonomia dos grandes criadores, já capitalizados. O porto e a campanha de Buenos Aires, cada vez mais inseridos e submetidos ao mercado mundial, exigiriam avanços significativos na produção pastoril, além dos exigidos e permitidos pelo saladeiro. “La ganadería se diversifica, apareciendo nuevos intereses al margen de los vinculados al saladero.” [82]

Em 1845, inicia a introdução do alambrado, que primeiro é usado para proteger as chácaras e plantações e, a seguir, para cercar as estâncias. [83] Os banheiros carrapaticidas, a melhoria genética, as invernadas, as áreas de manejo, a ovinocultura, a construção de ferrovias e, finalmente, o advento dos frigoríficos deixavam para trás a “fazenda crioula”, o peão agauchado e o saladeiro, formas de produção que sustentavam a ditadura rosista. Já controlando a terra, os estancieiros abriam-se igualmente para a colonização, que valorizava as propriedades, tornava mais baratos os meios de subsistência, fornecia a mão-de-obra crescentemente exigida pelos avanços produtivos, com destaque para a ovinocultura, sequiosa de mão-de-obra especializada.

Milcíades Peña assinala a própria transformação nos costumes, fortemente influenciadas pelos ingleses. Realidade muito visível, já que as modificações produtivas impunham-se em forma desigual. Em 1847, Mc Cann escrevia: “Los propietarios de campos pueden dividirse en dos categorías: los que quieren adoptar hábitos europeos, cuyas modalidades imitan, y los que prefieren conservar las costumbres del país.” [84] As transformações profundas que ocorriam ao nível da produção exigiriam novas formas de domínio político, superando inexoravelmente a ditadura rosista, que regera o país durante décadas: “Al llegar Caseros, lo único que restaba del frente rosista de 1830 eran las masas bonaerense y los caudillos mediterráneos, quiénes, por si solo nada podían decidir [...].”Milcíades Peña propõe que, se Rosas não tivesse caído, haveria possivelmente a separação do Litoral, como ocorrera com o Paraguai. [85]

Nova Ordem

Para Milcíades Peña, a nova ordem político-social que nascia em uma Argentina ainda mais ligada ao comércio exterior ensejava uma ainda maior dependência ao capital mundial. Situação que radicalizava, e não contraditava, movimento construído durante a ditadura rosista. “El saladero era menos dependiente del capital extranjero que el frigorífico [...] pero se trata de la diferencia que media entre la crisálida y la mariposa, es decir, la economía ‘independiente’ del rosismo llevaba todos los gérmenes de la economía dependiente sin comillas que se estructuró después.” [86] Ou seja, havia avanço de quantidade, mas jamais salto de qualidade nessa transposição.

La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infâmia, denso e original momento da interpretação de Peña sobre a formação histórica argentina. O trabalho aborda o candente período que vai da queda de Rosas, em 1852, à intervenção da Argentina de Mitre na Guerra do Paraguai, em 1864-70. Para o autor, essa guerra constitui momento conclusivo da imposição, pela “burguesia comercial” portenha, da conformação estatal liberal-unitária à nação argentina. O ensaio retoma a proposta da queda de Rosas, derrotado pelo unitarismo, da “burguesia comercial portenha”, sob a direção de Mitre, unida ao federalismo das províncias do Litoral e do Interior, comandadas pelo general José Justo Urquiza [1801-1870]. A fácil vitória de Monte Caseros, em fevereiro de 1852, expressaria a dissolução do rosismo, com a perda de sua base de sustentação, a estância e o saladeiro capitalistas tradicionais, como visto.

Milcíades Peña aponta o programa federalista de Urquiza como “aportes progressivos” importantes à “organización definitiva del país para facilitar su desarrollo capitalista”: supressão das aduanas internas; nacionalização das aduanas exteriores; livre navegação dos grandes rios; criação da Bolsa de Comércio; fundação de Departamento de Estatística; abolição da pena de morte; fim ao confisco por razões política, etc.[87] Não discute a contradição posta por programa nacional avançado defendido por forças sociais e políticas das províncias do Interior, segmentes, segundo ele regressivos. Programa progressivo em contradição direta com as propostas localistas e atrasadas defendido pela “burguesia comercial” portenha e os “criadores” e “saladeiristas” de Buenos Aires, que definia como os segmentos capitalistas de ponta da nação.

Um projeto democrático nacional abortado, em 11 de setembro de 1852, com o rompimento com a Confederação Argentina da província de Buenos Aires, comandada pelos unitários de Mitre, expressão da “burguesia comercial” portenha, dos criadores bonaerenses e dos interesses ingleses. Rompimento nascido da negativa de nacionalizar as rendas portuárias de Buenos Aires, que avantajavam a província em relação ao resto do país e à bacia do Prata. Movimento que Juan Bautista Alberdi definiu como retorno “ao rosismo sem Rosas”. Uma política imposta pela violência e pela força que levaria o mitrismo a prever a constituição da província de Buenos Aires em nação independente, caso não se impusesse à nação – República del Plata.[88]

Fracos e Fortes

Milcíades Peña analisa detidamente a fragilidade econômica da Confederação Argentina, mesmo após a liberdade de navegação dos grandes rios, diante de Buenos Aires, centro inconteste do capital mercantil, que recebia o apoio indiscutível do grande comércio mundial, com destaque para o inglês. Aponta sobretudo como responsável da vitória portenha a fragilidade do bloco político-social que sustentava a Confederação, que teria nos “ganaderos entrerrianos”, representados pelo general Urquiza, o único setor “capaz de enfrentar a la oligarquia perteña”. Peña lembra que não haveria contradições essenciais entre criadores e saladeiristas de Buenos Aires e do Litoral, que impedisse uma acomodação final entre eles. [89]

A vitória indiscutível de Urquiza, sobre Mitre, na batalha de Cepeda, em 23 de outubro de 1859, sem impor definitivamente a unificação e o poder nacional à província de Buenos Aires, expressaria o impasse social, político e histórico do federalismo, vergado mais tarde também devido à defecção do grande caudilho provincial na batalha de Pavón, em 17 de setembro de 1862. “[...] Urquiza representaba a los estancieiros entrerrianos” aliados da oligarquia portenha durante a ditadura de Rosas, até que se inimizarem com ele devido ao “monopolio aduanero y de los ríos”, inaceitáveis pelos proprietários das províncias do Litoral diante das novas oportunidades oferecidas pelo comércio mundial. Fora devido a essa contradição que acaudilharam as forças sociais provinciais do Interior, com contradição essenciais com a ditadura portenha, com destaque para a industria artesanal e pequeno-manufatureira e as massas gaúchas.

Não havia questão essencial que impedisse que os criadores entrerrianos abandonassem a suas sortes os antigos aliados plebeus na busca de acordo com as forças portenhas e bonaerenses, sobretudo diante de impasse que os prejudicasse economicamente. [90] Eles, como os criadores de Buenos Aires, abominavam o protecionismo industrial e a independência econômica. [91] A vitória em Pavón e a acomodação das classes hegemônicas litorâneas permitiram a imposição da ditadura unitarista ao federalismo das províncias do Interior. Movimento no qual Mitre associou a força das “bayonetas porteñas” ao apoio fornecido pelos núcleos raquíticos das oligarquias liberais locais, apesar da forte oposição da população, com destaque para as classes plebéias urbanas e sobretudo rurais, que comumente se sublevaram através das montoneras.

Para Peña, manteria-se o impasse histórico vivido pela Argentina na época: “Dentro del país no existían clases capazes de imprimir outra orientación a la evolución nacional”.[92] A inconseqüência histórica da “industria doméstica” e do modo de viver e produzir gaúcho ensejariam que a oposição à penetração da ditadura liberal-mercantil portenha, sobretudo sob a forma das montoneras, que reconhece como movimento popular de resistência, não tinha “absolutamente ningún porvenir”. Isso porque essa oposição carecia de “conteúdo social progresivo”, ao não aportar “la posibilidade de ningún orden social novo”. Trataria-se de “defensa moribunda de una estructura social sin posibilidades de evolución acendente”, como visto. O progresso estaria ao contrário com a “oligarquia porteña”, mesmo não democrática, pois sua “politica” “elevaba la economía nacional a una etapa superior en la cual a las masas que integraban las montoneras habría de tocarles la peor parte”. Isto porque “aportaba algunos escasos elementos de civilización industrial, con cuenta gotas y para beneficiar en primer término al capital extranjero y en segundo termino a la oligarquía porteña y sus socias menores del resto del país, con entera desidia por la creación de los cimientos de una gran nación.” [93]

O unitarismo dominou o país com a liquidação da Confederação Argentina, impondo a ordem liberal-mercantil às províncias do Litoral e do Interior e às suas populações, massacrando as montoneras e seus caudilhos. Porém, tratava-se de uma hegemonia frágil e instável, sobretudo devido à oposição essencial à dominação liberal-comercial portenha dos blancos da ex-província oriental e, sobretudo, da enorme, poderosa e rebelde ex-província do Paraguai. O governo daquele país, dependente de uma saída ao mar e, portanto, contrário à hegemonia portenha ou imperial sobre o Prata, era um aliado do federalismo argentino capaz de desequilibrar a correlação de força apenas construída. Milcíades Peña lembra: “La guerra contra el Paraguay fue la continuación lógica y la última etapa de la guerra de a oligarquía mitrista contra el Litoral e las provincias interiores argentinas […].”[94]

Destruição Geral

Dois pontos altos do ensaio La era de Mitre, sobretudo devido ao momento em que foi produzido, são a análise, ainda que sintética, da formação social paraguaia e do sentido da intervenção do governo imperial brasileiro naquele conflito. Intervenção que ensejou que os exércitos da Argentina mitrista e do Império destruíssem aquele país “con una minuciosidad que el mismo Hitler no logro hacer con ningún pueblo”.[95] Nesse processo, Milcíades Peña discute os resultados sociais profundos do processo de resistência paraguaio e retoma a discussão sobre os grandes objetivos da Revolução de Maio, analisados nos dois primeiros ensaios: “[...] emancipar el país de Espana y someter todo el virreinato a Buenos Aires”. [96]

O autor lembra que a luta paraguaia pela independência ensejara a repressão dos segmentos oligárquicos anti-nacionais espanholistas e portenhistas, com destaque para a aristocracia administrativa, para os grandes proprietários espanhóis e para os comerciantes ligados ao comércio de Buenos Aires e inglês. Em nome da “clase dominante del Paraguay integrada por medianos propietarios agrários”, o movimento capitaneado pelo dr. José Gaspar de Francia [1776-1840] se materializaria em uma “economía defensiva, basada en el monopolio estatal de la propiedad del principal instrumento de producción – la tierra – y de la comercialización de los productos fundamentales de exportación [...].” Solução que ensejaria à nação guarani, apesar da pobreza do país e da expropriação imposta pelo porto de Buenos Aires, “capitalizarse acelerdamente”. [97]

Milcíades Peña assinala que, por não possuir o país classes tão ricas como os “estancieiros e a burguesia comercial porteña”, surgira um “Estado que por su poderio económico y centralización política” competiria com aqueles segmentos sociais, entre os “más poderosas y prósperas de América del Sur”. Em sensível interpretação de cunho materialista, assinala que a “sociedad paraguaya, pesa a la dictadura estatal personalizada y de formas casi monárquicas”, era um país democrático, já que não era “un Estado parasito, sino ligado íntimamente a la producción y la comercialización de la producción”, em que “todas las clases eran realtivamente débiles e iguales”. [98] Uma debilidade e fragilidade das classes proprietárias que, agregaríamos, resultou em Estado interpretando fortemente os interesses dos médios e pequenos camponeses proprietários e arrendatários; dos pequenos comerciantes; do artesanato e produção pequeno-mercantil, etc. Concordando com o autor, ajuntaríamos que essa realidade manteve-se muito presente durante a ditadura francista [1813-1840] e passou a conhecer gradual mas inexorável transformação, em favor dos grandes proprietários, nos dois governos seguintes, de Carlos Antônio López (1844-1862) e Francisco Solano López (1862-1970). Movimento que não alcançou a realizar salto de qualidade, interrompido pela Guerra Grande, que realizaria radical metamorfose liberal-mercantil do país, sob a hegemonia do capital exterior e o tacão da ocupação militar.

Uma Saída Inesperada

Apoiando-se em Juan Bautista Alberdi e em outros autores coevos, Milcíades Peña assinala, sem os exageros então já habituais, o desenvolvimento relativo em que se encontrava o Paraguai nos anos 1860 – ferrovias, manufaturas, metalurgia, telefone, telégrafo, etc. Iniciativa de modernização apoiado essencialmente em capitais estatais, enquanto o Império e a Argentina, muito mais ricos, eram obrigados a endividar-se, para tal, junto ao capital mundial. Nesse processo interpretativo, conclui, em clara contradição com teses sobre a Argentina defendidas anteriormente: “Paraguay, en cambio, en virtud del poderío capitalista [sic] de su estado y de la homogeneidad de su clase gobernante demostró inmediatamente que era capaz de asimilar la civilización industrial y orientarse hacia ella, pero bajo su contra, sin perder su soberanía.” “Paraguay evolucionaba independientemente hacia la civilización capitalista industrial [...].” [99]

Ao encerrar a discussão muito sintética da formação social paraguaia, Peña recapitula sua tese central sobre a Argentina do período em análise: as províncias do Interior não tinham proposta alternativa superior à do liberal-mercantilismo portenho. A organização social das principais classes das províncias do Litoral era igual no essencial às da província de Buenos Aires. O que configurava o impasse, ou anel de ferro, nas suas palavras. Entretanto, agrega, apontando em outra direção: “Paraguay, en cambio, ofrecía una alternativo distinta a la de la oligarquía porteña y superior a ella, como que se basaba en el desarrollo autónomo de la economía nacional en base a todas las conquistas da civilización, industrial y capitalista.” [100] Uma economia nacional que se dera à margem das trocas internacionais e apoiada fortemente na produção artesanal, pequeno-manufatureira e camponesa. Produção que enfatizara e desqualificara, respectivamente, no relativo à Argentina.

Na segunda parte do ensaio, Milcíades Peña explica a guerra como iniciativa do liberal-mitrismo para, por um lado, “liquidar aquel foco que en cualquier momento podía aglutinar a las derrotadas provincias del Interior y a los estancieros de lo Litoral” e, por outro, “extender su influencia hasta el mercado paraguayo, rompiendo las barreras de su monopolio estatal y su rígida centralización”. Quanto ao Estado e às classes dominante imperiais, lembra que sua economia se sustentava no “trabalho esclavo”, padecendo das crises desse sistema de produção, “cada vez más costoso e ineficiente”, necessitando para tal “expansión territorial a expensas de los vecinos, con tendencia a dominar toda la zona del Plata”.[101] Em outra sensível interpretação, nega terminantemente que a Argentina mitrista e o Brasil Imperial fizeram “la guerra del Paraguay por encargo de Inglaterra, aun que al terminar la guerra el principal beneficiario [...] fue el capital londinense.” [102]

Lembra que o ataque do Império, associado à Argentina, contra o Paraguai, começou efetivamente com a agressão orquestrada por aqueles países ao Uruguai, “el último aliado que le quedaba” à nação guarani, “después de la derrota del Interior argentino y la neutralización del Litoral por el acuerdo de Urquiza con Mitre.” [103] Destaca as ambições mais amplas do Império na República Oriental, da qual parte de seu território era “una polongación del Estado brasileño do Rio Grande do Sul”, com grande “cantidad de estacieros [rio-grandenses]” estabelecidos nas regiões setentrionais do país oriental, que sonhavam com sua anexação ao Império. Assinala a vontade dos criadores sulinos de continuarem se comportando no Uruguai como em sua terra, despachando o gado livremente para o Rio Grande, recebendo de volta os cativos homiziados no Uruguai, que abolira a escravidão.[104]

O Sentido da Guerra

Milcíades Peña assinala o apoio de Mitre e do Império à invasão do Uruguai por Venancio Flores [1808-1868], até a deposição do governo independente e legal blanco. Cita carta de Mitre a Domingo Faustino Sarmiento [1811-1888] comprovando a utilização da necessária travessia das tropas paraguaias de Corrientes como forma de levar o Paraguai à guerra contra a Argentina: “Por aquí son [los paraguayos] impotentes. Por tierra tendrían que violar el territorio argentino y se encontrarán en guerra contra nosotros aliados con el Brasil.”[105] Citando o jornal mitrista Nación Argentina, de 3 de fevereiro de 1865, assinala o projeto de destruição da ordem autonômica em vigor no Paraguai, em nome do liberalismo mercantil, e portanto, também, dos interesses ingleses, antes da declaração de guerra entre a Argentina e este país. “La República Argentina [...] está em el imprescindible deber de formar alianza com el Brasil a fin de derrocar esa abominable dictadura de López y abrir al comercio del mundo esa expléndida región.”[106] Desnuda a retórica patriótica argentina e imperial, servindo-se de declaração do próprio Mitre, sobre a guerra como orientada a derrubar a ditadura bárbara paraguaia. Quando a guerra terminava, Mitre escrevia: “Los soldados aliados, y muy particularmente los argentinos, no han ido al Paraguay a derribar una tiranía [...]. Han ido [...] sirviendo intereses argentino y lo mismo habrían ido se en vez de un gobierno monstruoso y tiránico [...] hubiéramos sido insultados por un gobierno más liberal y civilizado.”[107] Assinala o atraso militar paraguaio diante dos antagonistas e a defesa intransigente da sua população da liberdade. [108]

Milcíades Peña chama a atenção para que, mesmo sendo a guerra contra o Paraguai parte fundamental da ofensiva final contra as forças federalistas das províncias do Litoral e do Interior, como assinalado, sobretudo diante da resistência guarani, ela “debilitó el frente interno de la oligarquía y permitió un último estertor de las masas” daquelas regiões “contra a oligarquia porteña”. Assinala que a população plebéia argentino “votó contra la guerra del Paraguay desertando em masa, insurreccionándose, cooperando con los paraguayos donde pudo y resistiéndose pasivamente al mitrismo en todas partes.”[109] Destaca como parte desse movimento as montoneras do Interior, dirigidas por Felipe Varela, parte mais significativa da situação de insurreição intermitente que dominou os seis anos de governo de Bartolomé Mitre. [110]

Conclui o trabalho ressaltando o pouco entusiasmo dos estancieiros bonaerenses pela guerra, devido sobretudo aos gastos financiados com os impostos de exportação, ao contrário da oligarquia comercial portenha, a grande interessada no conflito, que conformou a nação no sentido liberal pretendido, estendendo seu raio de ação e lhe garantiu negócios fabulosos. Grande defensor do comercio, Mitre afirmaría: “En la guerra del Paraguay ha triunfado no solo la República Argentina sino también los grandes principios del libre cambio, que son los que vivifican al comercio. Para el comercio se han derribado las fortalezas que amenazaban las costas; para el también se han roto la cadenas que obstruían el rio Paraguay; para él se ha conquistado también la paz presente y futura de estas regiones [...].” [111]

Termina narrando a situação de destruição e saque do Paraguai após a guerra, sob o tacão da ocupação militar. Assinala que, já em 1870, o país contraía seu primeiro empréstimo, de um milhão de libras, que terminou integralmente nas mãos dos vencedores. Lembra que a oligarquia portenha não alcançou plenamente seus objetivos, pois o Império defendeu a integridade territorial do Paraguai, para que a região não escapasse para as mãos argentinas, assim como os ingleses protegeram o status nacional daquele país, contra os dois grandes agressores, preocupados na recuperação de seus empréstimos. [112]

“De todo esto o único que queda em pie es que la oligarquía porteña, contra la voluntad de toda la Nación Argentina, entró por derecho propio en la historia universal del impudor con una de las más épicas canalladas que registra la historia del mundo. Com semejante hazaña Mitre impuso el predominio indiscutido de la oligarquía porteña sobre el resto del país, incluso sobre los otrora rebeldes ganaderos entrerrianos, y destruyó también, en beneficio de la burguesía europea y de su servil intermediario cita en las orillas del Plata, el primero y único intento de evolución independiente hacia el capitalismo industrial que conoció América Latina hasta hoy.” [113] Uma valorização de processo que não se materializou na Argentina e no Uruguai, não por destino histórico, mas pela força e vitória das classes mercantis e pastoris pré-capitalistas da província de Buenos Aires, em processo que atrasou substancialmente a gênese da produção capitalista e das classes trabalhadoras fabris. Processo que valorava como único caminho em direção da emancipação social e política regional.


[1] FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre: Est, 1980. pp. 9-52.

[2] BAGÚ, Sergio. Estructura social de la colônia: ensayo de historia comparada de América Latina. Buenos Aires: Ateneo, 1952; ZORRILLA, Ruben H. em Extracción social de los caudillos: 1810-1870. Buenos Aires: La Pleiade, 1972.

[3] FREITAS. O capitalismo pastoril. Ob.cit. p. 11.

[4] FREITAS, Décio. Palmares : a guerra dos escravos. Porto Alegre: Movimento, 1973.

[5] Cf., entre outros: FREITAS, Décio. Insurreições escravas. Porto Alegre: Movimento, 1976; Escravos e senhores-de-escravos. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul, UCS, 1977; Escravidão de índios e negros no Brasil. Porto Alegre: EST/ICP, 1980; FREITAS, Décio. O escravismo brasileiro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980; FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre: EST, 1980. Os guerrilheiros do Imperador. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982

[6] FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Ob.cit. pp. 10-11.

[7] Id. “O capitalismo pastoril”. Ob.cit. p. 16.

[8] Id.ib. p. 18.

[9] Id.ib. p. 35.

[10] Id.ib. p. 29.

[11] Id.ib. pp. 31, 44.

[12] MAESTRI, Mário. “O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril sul-rio-grandense”. MAESTRI, Mário. [Org.] O negro e o gaúcho: estâncias e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: EdiUPF, 2008. pp. 169-271.

[13] Cf., entre tantos outros: ZARTH, P. A. História agrária do Planalto Gaúcho. 1850-1920. Ijuí: EdiIJUÍ, 1997. DAL BOSCO, Setembrino. Fazendas pastoris no Rio Grande do Sul. [1780-1889]. Programa de Pós-Graduação em História da UPF. Passo Fundo, novembro de 2008 [mestrado]; EIFERT, Maria Beatriz Chini. Marcas da escravidão nas fazendas pastoril de Soledade: 1867-1883. Passo Fundo: EdiUPF, 2007; PALERMO, Eduardo Ramón Lopez. Tierra esclavizada: el norte uruguaio en la primera mitad del siglo 19. PPGH, Passo Fundo, 2008. [mestrado]

[14] D’AMICO, Ernesto. Milcíades Peña: Una história trágica. http://www.tomasabraham.com.ar/seminarios/2008damico.pdf [10 de abril de 2010]

[15] PEÑA, Milcíades. Antes de Mayo: Formas sociales del transplante español al nuevo mundo. 1500-1810. Buenos Ayres: Fichas, 1973; El paraíso terrateniente: federales y unitarios la civilización del cuero. 1810-1850. Buenos Aires: Fichas, 1972; La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infamia. 1850-1870. 3 ed. Buenos Aires: Fichas, 1975; De mitre a Roca: consolidación de la oligarquia angocriolla. 18701885. 2 ed. Buenos Aires: Fichas, 1972.

[16] D’AMICO, Ernesto. Milcíades Peña: Una história trágica.ob.cit.

[17] MAESTRI, Mário. A Escravidão e a gênese do Estado Nacional Brasileiro In: Seminário Internacional “Além do apenas moderno”, 2001, Recife. ANDRADE, Manuel Correia de. [Org.] Além do apenas moderno. Brasil séculos XIX e XX. Recife: Massangana, 2001. v.1. pp.49 - 77

[18] PEÑA, Milcíades. Antes de Mayo. Ob.cit. p. 75.

[19] BANDEIRA, L. A. Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na bacia do Plata: Argentina, Uruguai e Paraguai. Da colonização à guerra da Tríplice Aliança. 2 ed. Brasília: EdUnB, 1995.p. 58.

[20] PEÑA. Antes de Mayo. Ob.cit. p. 22, 23.

[21] PEÑA. Antes de Mayo. Ob.cit. p. 87

[22] Cf. Sobretudo: Economía de la sociedad colonial, de 1949, e Estructura social de la colonia, de 1952.

[23] Cf. sobretudo: FRANK, A.G. Capitalismo e subdesarrollo en la América Latina, de 1967.

[24] Cf. Sobretudo: MARINI, R.M. El subdesarrollo y la Revolución, de 1969; e Dialéctica de la dependencia, de 1973.