Brasil bajo Lula

 

Não ao não! Não ao sim!

Por Mário Maestri (*), 11/10/05

A consulta de 23 de outubro aborda questão de magna importância que angustia profundamente a sociedade brasileira, com destaque para seus setores mais desprotegidos. A população residente no Brasil vive permanentemente preocupada com a segurança individual, sua e de seus próximos, ameaçada pela violência que hoje assola crescentemente, apenas em forma desigual, o mundo urbano e rural.

Apesar da importância da questão, o plebiscito sobre a proibição do comércio civil de armas desvia a atenção da responsabilidade governamental, passada e presente, na degradação incessante da segurança individual, constituindo cínica e fria manipulação da opinião pública através da promoção da divisão da população em torno de duas alternativas  incapazes de porem minimamente trava à violência que vive o país.

Não há relação mecânica entre armamento da população, violência e criminalidade. Faltam com a verdade aqueles que, como o senhor Luiz Inácio Lula da Silva, sugerem ou propõem que as astronômicas “taxas de homicídios” brasileiras devem-se “ao enorme volume de armas em circulação no país”. [FSP, 9.10.2005] Nações de população hiper-armada, mas com elevados níveis de desenvolvimento social – como o Canadá –, possuem baixíssimas taxas de homicídios.

Cidadãos armados

Nos anos 1970, quando vivia no exílio, cruzando a Suíça, vi, estarrecido, pela janela do trem, fuzil-metralhadora e seu respectivo pente abandonados em banco de uma estação. Nada de extraordinário, me informaram: os jovens reservistas, que guardam as armas de guerra em casa, não raro as esquecem, após festejarem copiosamente o fim dos exercícios militares anuais. Da Suíça comentam-se os queijos, os chocolates e os bancos, não a criminalidade comum e a violência familiar armada.

Israel é um dos países mais armados do mundo, onde a cultura das armas e a violência permeiam incessantemente a vida quotidiana da população, sendo exercidas sistematicamente contra a população não-nacional. Porém, não temos notícias de israelenses utilizando, dia e noite, suas potentes armas pessoais para resolverem problemas com esposas, maridos e vizinhos de rua.

Não são as armas que determinaram que o Brasil tenha escandalosa taxa de homicídios. São a já histórica e contínua degradação das condições da vida, saúde, educação, cultura, lazer, trabalho e salário, exigida pela ditadura do grande capital internacional e nacional, sob o domínio esmagador dos valores consumistas, hedonistas e individualistas da sociedade de mercado. É a ordem social friamente impiedosa que aleita e embala a violência e a criminalidade crescentes. Contra isso, nem uma só palavra, nem uma só proposta governamental real.

A culpa é do revólver

É compreensível que governo que realiza cortes monstruosos nos investimentos sociais e promove a degradação dos salários e das condições de trabalho, culpe o revólver pelo mar de violência no qual submerge o país. A promoção e o apoio governamentais ao plebiscito devem-se à certeza da fácil vitória da proposta da proibição do comércio civil de armas, que lhe permitirá igualmente uma vitória política e, portanto, prosseguir mais facilmente em sua trajetória socialmente impiedosa e violenta.

As razões para votar sim seriam aparentemente muitas e boas. O sim interpretaria o sonho de mundo onde os homens são amigos dos homens e as armas um inevitável contra-sentido, já que destinadas por natureza à morte de seres vivos, devendo, portanto, serem abolidas e proibidas sem distinções. O sim permite também  manter a distância do partido do gatilho, que reúne alguns dos personagens e instituições mais obscurantistas do Brasil – Jair Bolsonaro,  UDR, Veja.

Em verdade, o plebiscito não prevê minimamente o desarmamento geral. Ao contrário, promove apenas o desarmamento do cidadão na plenitude de seus direitos. Permanecerão com suas armas as polícias civis e militares, fontes de diárias e incessantes violências contra a população desarmada, sobretudo trabalhadora. Violências para as quais os governos fecham os olhos e garantem a impunidade, após a abertura e realização do tradicional inquérito pertinente, é claro!

O monopólio do poder

Permanecerão na posse e no porte de suas armas as centenas de milhares de guardas e milicianos privados, à disposição daqueles capazes de pagarem pela proteção armada fornecida por indivíduos, ao igual que os policiais civis e militares, estressados pelas condições de trabalho e existência a que são submetidos. Manterão o direito de posse e porte individual de armas membros das forças armadas e das instituições judiciais que promovem quotidianamente desmandos públicos com as mesmas.

Seriam também abundantes as boas razões para votar não. O direito de armamento da população, sobretudo organizada em suas instituições civis, é forma de proteção dos direitos sociais e democráticos. O desarmamento da cidadania fortalecerá o monopólio das armas do Estado, em geral, e das forças armadas, em especial. Instituições que, através da história, usaram-nas mui raramente na defesa da cidadania e da nação e, habitualmente, contra a população pobre e os direitos civis e democráticos. No relativo ao exército, basta lembrar Canudos, Contestado, Estado Novo, 1961 e 1964. No relativo à polícia, basta abrir diariamente os jornais.

Em 11 de setembro de 1973, o exército chileno pode vergar a vontade da maioria da população pois mantinha o monopólio das armas, radicalizado por campanha em prol do desarmamento da população, promovida paradoxalmente pelo governo de Allende nos meses que antecederam o golpe. Por exigência do alto comando militar, é claro. Trabalhadores e democratas morreram no Chile resistindo, quase de mãos nuas, diante de exército tido, até então, como o mais democrático da América Latina. No Iraque, as tropas invasoras anglo-estadunidenses continuam pagando caro o direito de cada iraquiano de ter em casa uma arma automática, garantido durante o governo passado!

Chame o ladrão!

O não ao plebiscito apóia-se igualmente na consciência do popular de que a proibição efetiva de manter legalmente uma arma municiada em sua moradia o deixará, inevitavelmente, ainda mais desprotegido diante de uma agressão. Em forma indiscutível, a quase certeza da inexistência de uma arma em uma moradia favorece a sua invasão, por quem quer que seja.

Após o plebiscito, indivíduos não raro quase destinados à violência devido às condições de nascimento e criação, que encontram no crime meio de vida e de realização, continuarão sendo encarcerados como animais, por falta de recursos, para, a seguir, serem postos em liberdade, também por falta de recursos, para irem bater à porta de morador  sem qualquer possibilidade de pedir e receber prontamente a proteção pública a que tem constitucionalmente direito. Pois, folga dizer que não há igualmente recursos para segurança corretiva.

Anular o voto no dia 23 de outubro é pronunciar-se contra as falsas alternativas propostas pela cínica demagogia governamental, e dar, assim, passo, ainda que mínimo, em direção do armamento moral e político da população trabalhadora e democrática, na luta pela construção, difícil mas imprescindível, de sociedade fraterna, onde a paz, a segurança e a realização sejam  direitos de todos, e não apenas das classes endinheiradas.


(*) Mário Maestri, é historiador. Participou da resistência à ditadura militar. Viveu no Chile e, a seguir, na Bélgica, como exilado, de 1970 a 1977. E-mail: maestri@via-rs.net

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