Brasil bajo Lula

 

Novo Partido

Aprofundar o debate sobre o funcionamento democrático

Movimento Esquerda Socialista - RJ

O debate sobre o novo partido já envolve um setor significativo de petistas e ex-petistas, funcionários públicos, estudantes e militantes de diferentes trajetórias e com inserção em diversos movimentos sociais. Este debate, embora ainda inicial, já tem apresentado alguns elementos significativos de acordo comum ou com o apoio da ampla maioria dos envolvidos. Estes pontos dizem respeito não apenas à compreensão geral da necessidade da construção de uma alternativa política, mas também aos traços gerais desta alternativa: anticapitalista, classista, anti-imperialista, socialista, democrática e plural. Uma alternativa capaz de aprender com os erros e acertos históricos da esquerda brasileira.

No entanto, apesar dessa base comum que nos permite avançar, é preciso reconhecer que muitos aspectos do partido que queremos construir ainda estão em aberto e precisam resultar dos debates a serem travados entre seus milhares de protagonistas. Este texto se pretende apenas um dos muitos aportes necessários a este debate.

Sobre a democracia interna

 Nenhuma organização que se pretende portadora de um projeto de emancipação humana pode prescindir de ser profundamente democrática. Este é um "consenso" na esquerda de uma maneira geral, com todos os partidos reivindicando o caráter democrático do seu funcionamento interno. O debate da democracia interna, no entanto, precisa ser deslocado da retórica para os mecanismos capazes de garantir seu caráter substantivo. Afinal, mesmo as direções mais autoritárias e burocráticas se afirmam democráticas, como no caso dos PCs tradicionais.

Alguns aspectos deste funcionamento democrático já têm sido elencados nos documentos do campo "somos todos radicais", como o envolvimento cotidiano dos núcleos de base nos processos de tomada de decisão, o controle da atividade parlamentar pelos militantes e o direito à formação de tendências permanentes. Pensamos ser necessário o aprofundamento destes temas.

Sobre o caráter do partido

O partido que queremos construir não deve se pretender apenas a força política hegemônica na classe, mas também deve funcionar como pré-figuração de uma nova sociedade, como estratégico e como aposta da nossa militância. Precisa respeitar os princípios da democracia operária, convivendo com a idéia de pluralidade, já que, historicamente, quando um grupo se intitula como o único capaz de construir uma sociedade socialista, acaba assumindo como projeto a imposição do monopólio do poder.

A questão das tendências

Este debate precisa ser enfrentado em dois planos: o das condições imediatas para a constituição da alternativa e outro, de mais fôlego, sobre o projeto estratégico de partido que queremos construir.

Sobre o primeiro plano parece haver um acordo cada vez mais generalizado entre nós: não é possível reunir agrupamentos políticos diferentes, com distintas tradições e trajetórias, sem garantir que possam expressar de forma organizada suas posições no interior do novo partido. Colocar como condição para a formação da alternativa a diluição destas correntes seria uma tentativa desastrosa de submeter todas essas diferenças ao controle de uma maioria inicial. Foi isso que nos propôs o PSTU e foi isso que rejeitamos. Vale acrescentar que uma proposta como essa de diluição das correntes orgânicas revela uma atitude pouco promissora com as eventuais minorias nos debates internos e pouca disposição real em ter os militantes que não pertençam a estas organizações como protagonistas reais do processo político.

Portanto, não parece haver dúvidas de que o partido a ser constituído deve ter pleno direito à organização de tendências como condição de reunir não apenas as organizações já envolvidas no processo, como para garantir a participação de outros setores que venham a se somar no próximo período, afinal, pensamos que nosso projeto tem suficiente potencial para atrair e abarcar muitos outros. Para citar um exemplo, uma liderança pública importante como Heloísa Helena dificilmente aceitaria participar de um partido sem este direito. O mesmo se deve dizer de outras correntes (ou partes de correntes) que venham a romper com o PT no próximo período.

Instâncias democráticas

Evidentemente, a aspiração a um funcionamento democrático cairá no vazio se não estiverem garantidas instâncias que a concretizem. Desde logo, é preciso estabelecer os núcleos como os espaços dinâmicos de debate e tomada de decisão. A relação entre a existência de tendências internas, organicamente estruturadas, não é de forma alguma incompatível com este funcionamento. Para evitar este risco, devemos adotar soluções organizativas que impeçam as tendências de substituírem os órgãos de base. Não devem existir núcleos particularistas, "ossificados", de uma única corrente, que impeçam o ingresso e o acesso ao debate de militantes de outras tendências ou independentes. Não entendemos os órgãos de base como produtos artificiais de determinadas tendências, como ocorreu muitas vezes no PT, o que não contribuiria para o aprofundamento da democracia interna.

Os integrantes das instâncias de direção precisam ser escolhidos com base no debate aprofundado entre o conjunto dos militantes. É necessário que este debate seja permanente e sem interdições. Os Congressos devem ser um espaço privilegiado de aprofundamento dos traços mais importantes da compreensão da realidade e atuação sobre ela, mas não podem servir de pretexto para impedir o debate nos seus intervalos, inclusive no que se refere à tática do partido. Não podemos repetir a prática de termos os militantes de base não como sujeitos da emancipação humana, mas como meros executores da vontade da direção.

Pensamos ainda que é necessário garantir a existência de regras de transição para as tomadas de decisões mais importantes. Assim, devemos debater e estabelecer que num período inicial as tais decisões só poderiam ser adotadas por uma maioria qualificada. Com o avanço dos debates e da atuação comum poderemos passar às decisões por maioria, resguardados todos os mecanismos democráticos. Esta seria uma forma de compatibilizar democracia e pluralismo em nosso novo partido.

Uma condição necessária à efetivação dos traços que pensamos importantes no novo partido é a questão financeira. Desde logo, a independência financeira precisa ser garantida pelo funcionamento orgânico e pela contribuição militante. Não podemos cometer o erro da dependência em relação aos aparatos institucionais. De outro lado, é igualmente indispensável que estas finanças sejam controladas democraticamente, uma vez que implicam diretamente nos meios necessários à concretização dos debates, à expressão das diversas posições que possam se apresentar. Do mesmo modo, não podemos abrir mão do desenvolvimento de uma sólida imprensa partidária, que inicie a disputa estratégica com o oligopólio dos meios de comunicação, e de uma política de formação, que potencialize a intervenção dos militantes na realidade e no partido.

O debate estratégico: a diferença entre construir um partido e construir uma fração

Fazer o debate sobre a questão das tendências no novo partido, no entanto, não pode se restringir à definição mais urgente e transitória. É necessário começar a apontar perspectivas de maior fôlego em relação a esta questão. E isso por uma razão: a forma pela qual lidaremos com esta questão nos próximos anos sofrerá influência direta do que tivermos como expectativa para o futuro.

Neste debate, muito mais que uma guerra de citações de clássicos, é preciso recolher a experiência da esquerda radical. A proibição da formação de tendências internas tem sido acompanhada de uma história de infindáveis rupturas, de um fracionamento altamente prejudicial à classe e sua luta. Divergências que, ainda que significativas, poderiam ser totalmente superadas em um prazo relativamente curto, não encontram outra forma de se manifestar que não pelo rompimento organizativo. Rupturas que, muitas vezes, aparecem inexplicáveis aos olhos das massas e mesmo de grande parte da vanguarda.

Neste sentido, é preciso estabelecer uma diferença fundamental: a diferença entre a formação de uma fração e a construção de um partido. A radical transformação da realidade que buscamos só ocorrerá se for um processo de massas e um partido que se pretenda instrumento deste processo deverá ser igualmente capaz de dirigir um setor de massas significativo. É preciso que tenhamos claro que a classe trabalhadora e o conjunto dos oprimidos não são um conjunto homogêneo. Isto já era verdade há um século, mas é ainda mais verdadeiro hoje, depois de um intenso processo de modificações no processo produtivo que, se não alteram em nada sua natureza opressiva e de exploração, devem nos instigar a uma ação política adequada à realidade. O partido precisa ter amplitude suficiente para abarcar as diferenças existentes no interior da classe trabalhadora, sob pena de ser estruturalmente incapaz de dirigi-la.

Freqüentemente, na história do movimento operário, a construção de um partido foi confundida com a de uma fração, um setor muito mais homogêneo, com definições comuns e fechadas sobre quase todos os temas em debate, no interior do qual praticamente não há diferenças políticas significativas. Esta confusão deve ser por nós evitada a todo custo, sob pena de abrirmos mão da tarefa fundamental que nos está colocada, que é construir um novo partido da classe trabalhadora no Brasil.

Além de impedir a formação de um novo partido de esquerda nos próximos meses, no longo prazo, a proibição do direito de tendência tem um resultado perverso. Apenas as posições majoritárias na direção tem capacidade real de organizar a defesa de suas propostas. As minorias no partido ficam sem instrumentos de organização nacional da defesa de suas posições.

Neste sentido, é fundamental que o direito à formação de tendências internas não seja apenas um arranjo temporário, mas tenha lugar no estatuto do novo partido. O estatuto precisa dar uma relevância especial aos mecanismos de funcionamento democrático e, como todo estatuto, só deverá ser modificado por uma maioria muito ampla.

As liberdades democráticas internas não podem estar sujeitas às mesmas regras de maioria que funcionam para as decisões táticas por exemplo. Ou seja, a maioria não pode ter o direito de, a qualquer momento e de acordo com suas conveniências imediatas, eliminar os direitos da minoria. Esta definição é crucial, porque do contrário, os direitos democráticos das minorias se transformarão em uma mera concessão da maioria; como toda concessão poderão ser retirados a qualquer momento e ficarão, portanto, fortemente condicionados. Parafraseando uma fórmula conhecida, também no interior dos partidos a liberdade deve e só pode ser a liberdade dos que pensam de forma diferente ou não será liberdade.

Evidentemente, isto não significa que o partido não terá posições ou não decidirá por ações claras na conjuntura e nem que prescindirá de medidas disciplinares contra os comportamentos incompatíveis com seu projeto. Mas significa que não optará por tentar se construir pelo esmagamento dos divergentes e pela negação dos seus direitos democráticos.

Também não significa que pensamos as tendências como eternas, cristalizadas e imutáveis. É claro que na experiência da luta real e concreta e nos avanços programáticos que formos capazes de construir as tendências poderão se atenuar e mesmo desaparecer. Se isto ocorrer com bases consistentes de confiança política será uma vitória de todos nós. O que não podemos é colocar no horizonte a diluição "por decreto" de correntes que existem na realidade. Este horizonte retira a tranqüilidade e a confiança necessárias às forças políticas envolvidas neste projeto e condiciona negativamente sua ação política no presente.

17 de novembro de 2003

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