Palestina no
se rinde

 

Em pleno combate

Por Mário Maestri (*), Fevreiro 2006

O êxito do Hamas nas eleições de 25 de janeiro. A desocupação parcial da faixa de Gaza. Vitórias parciais que se materializam, mais e mais, na Palestina, no Iraque, no Afeganistão, na Venezuela, na Bolívia, diante dos olhos atônitos dos poderosos que haviam anunciado exultantes o fim da construção da história pelos povos.

É difícil imaginar algo pior para os governos de Israel e dos Estados Unidos do que o pronunciamento democrático da população palestina, nas eleições de 25 de janeiro, que conferiu 74 deputados para o Hamas e apenas 45 para o Fatah de Abu Abbas, num parlamento de 132 cadeiras. Para não falar da terceira colocação da Frente Popular para a Libertação da Palestina, intransigente defensora da luta contra a ocupação, de origem marxista.

O explosivo resultado eleitoral, que desmentiu igualmente as já habituais manipulações dos ibopes da vida [anunciou–se a vitória do Fatah por uns cinco pontos de diferença], desorganizou implacavelmente toda a política de aniquilamento da resistência palestina empreendida, nos últimos anos, com indiscutível sucesso, pela administração Bush, em estreita colaboração com o governo israelense e a União Européia.

Após o trauma causado ao mundo árabe e à Palestina pela invasão anglo–estadunidense do Iraque, celebrada  precipitadamente por Bush em primeiro de maio de 2003, a morte de Yasser Arafat, em 11 de novembro de 2004, certamente por envenenamento, constituiu o primeiro grande movimento da ambiciosa operação. Como assinalou a mídia ocidental, quase festejando, a eliminação do velho lutador abria caminho para a entronização no Fatah e na OLP de direção flexível que permitisse a imposição da paz israelo–estadunidense na região.

Candidato do imperialismo

O segundo passo da ambiciosa operação foi a eleição de Abu Abbas, de 69 anos, antigo guerrilheiro ganho à colaboração, primeiro como dirigente do Fatah e, em 9 de janeiro de 2005, como presidente da Autoridade Nacional Palestina – ANP –, o arremedo de governo permitido pelos israelenses aos palestinos sob ocupação. Primeiro ministro em inícios de 2003, Abu Abbas renunciou por opor–se a Arafat. Com pouco prestígio entre os palestinos, foi um duro crítico da segunda “Intifada” e defensor do fim dos ataques a Israel.

A eleição de Abu Abbas foi facilitada pelo seqüestro, em 2002, e condenação à prisão perpétua, a seguir, pelo Estado de Israel, do popular, carismático e combativo Marwan Barghuti, dirigente do Fatah na Cisjordânia. Hoje com 46 anos, Barghuti foi um dos principais organizadores, em 1987–93, da primeira “Intifada”,  a guerra dos Davids armados de pedras contra os Golias encerrados em blindados, e tem sido igualmente crítico implacável da corrupção e dos excessos da  ANP.

A terceira e última etapa política do ambicioso plano do imperialismo constituía a vitória eleitoral total, nas últimas eleições parlamentares de 25 de janeiro, dos seguidores da Fatah de Abu Abbas. Para tal, manipulou–se vergonhosamente as listas de candidatos daquele movimento, marginalizando os nomes comprometidos com a resistência e privilegiando aqueles que se esbaldavam na colaboração e no usufruto privado das escassas verbas cedidas pelos USA e pela União Européia para financiar a ANP.

Reivindicações históricas

Previa–se que, com o apoio do imperialismo e de Israel, senhor inconteste da ANP, o novo governo implementaria a repressão daqueles que se opusessem a uma paz emasculada e ao abandono das reivindicações históricas palestinas: liberdade dos milhares de prisioneiros políticos; devolução dos territórios ocupados na guerra de 1967; direito de retorno das populações expulsas pelas armas; independência do setor oriental de Jerusalém; constituição de Estado palestino soberano.

Em nome da paz, o governo palestino liderado por Abu Abbas aceitaria a constituição de um Estado fantoche e desmilingüido, formado pela faixa de Gaza, recém–desocupada; por alguns enclaves territoriais na Cisjordânia, cercados por possessões israelenses, à semelhança dos bantustãos do finado regime racista sul–africano. Em vez de uma nação palestina independente, um protetorado israelense, sem capital, sem unidade territorial, sem autonomia econômica, sem autoridade sobre suas políticas, fronteiras, finanças, exército.

Esperava–se que a repressão implacável das forças que se opunham dentro e fora da OLP à rendição vergasse a disposição de resistência da população, criando as condições para uma reorganização geral da sociedade e da economia palestina, sob o rígido controle de Israel. A nova realidade criaria base social palestina mínima para o sepultamento da luta histórica por territórios e Estado independentes.

Raio em céu sereno

A vitória do Hamas desorganizou sem piedade a trama urdida pela administração Bush. Ela não foi, porém, em nenhum caso, raio riscando inesperadamente um céu sereno, como proposto pela grande mídia mundial. Nas semanas anteriores às eleições, prevendo a derrota, Abu Abbas procurou se servir das dificuldades impostas pelos israelenses às eleições para retardá–las e obter mais tempo para impor seus candidatos.  Dias antes do pleito, assustado com o avanço eleitoral do Hamas, o governo de Israel permitiu que Barghuti, candidato da lista eleitoral do Fatah, fosse entrevistado na prisão, para que desviasse votos do Hamas.

Apesar de todos os sinais, a administração Bush exigiu o cumprimento dos prazos eleitorais, esperando conquistar, na Palestina, alguns dos muitos pontos que perdeu junto à opinião publica mundial e estadunidense, devido ao Iraque. A vitória do Abu Abbas e a repressão da resistência palestina por forças palestinas mostrariam a correção da política de construção, através de eleições de cartas marcadas, de governos enfeudados ao imperialismo, como tem ocorrido, com mais ou menos sucesso, no Afeganistão, no Iraque e ocorrerá, proximamente, no Haiti, com o apoio do governo brasileiro de Lula da Silva.

A população palestina desarmou inexoravelmente a trama ardilosamente tecida deslocando simplesmente grande parte do apoio que concedera ao Fatah, de Yasser Arafat, para o Hamas, de Ismail Haniya.  Retirou, assim, sem complacência, o apoio dado à Abu Abbas, há um ano, devido a sua rendição ao imperialismo e ao sionismo. Isolou e enfraqueceu profundamente o presidente palestino e seus aliados, ao colocar no coração do próximo governo organização execrada como terrorista pelo governo estadunidense, ao igual que o IRA, as FARC, o Hesbolah, etc.

É ledo engano definir os resultados eleitorais de 25 de janeiro como um simples deslocamento do apoio eleitoral da população, de uma administração do Fatah, corrupta e incapaz, para um Hamas visto como íntegro e competente. A população palestina é uma das mais politizadas do Oriente Médio. A corrupção, antiga realidade nas filas do Fatah, foi realidade minimizada pela população, enquanto segmentos do Fatah prosseguiam na luta e o velho combatente resistia, aos 75 anos, com as mãos já trêmulas, entrincheirado nos escombros de ex–palácio presidencial de Ramallah, cercado por tropas israelenses, como bandeira viva dos sofrimentos e da firmeza dos palestinos.

Pátria para todos

A vitória também não foi uma surpresa para o Hamas. Desde sua recente fundação, em 1987, no início da primeira Intifada, esse movimento integralista islâmico vem ampliando seu prestígio entre a população, sobretudo devido à associação de luta sem quartel e, não raro, sem limites, ao Estado de Israel e à construção de uma vasta rede de assistência social.

O Hamas promoveu sem pejo o terrorismo individual, como resposta ao terrorismo do Estado israelense. Mahmoud al–Zahar, dirigente do Hamas, chegou a propor: "A morte de civis tem que ser punida com a morte de civis". Em retaliação a assassinatos israelenses, em fevereiro–março de 1996, o Hamas lançou atentados suicidas que ceifaram a vida de mais de meia centena de israelenses. Essas ações puseram fim ao mito de uma guerra em que só morriam palestinos; conquistaram apoio entre uma população ferida e humilhada; debilitaram o frágil movimento pacifista israelense e fortaleceram a direita, facilitando a eleição de Binyamin Netanyahu.

O apoio ao Hamas cresceu igualmente devido a sua rede assistencialista de escolas, refeitórios, ambulatórios, etc., que assumiu singular importância após a eliminação implacável das lideranças, das associações, das instituições, etc. da Autoridade Nacional Palestina  pelo governo israelense comandado por Ariel Sharon. Como assinalado, essa política almejava cortar os profundos laços do Fatah de Yasser Arafat com a população, permitindo a ascensão de direção desvinculada com as reivindicações nacionais palestinas.

O desenvolvimento do integralismo islâmico no mundo árabe, através de escolas alcorânistas e rede assistencialista, é uma antiga política dos anglo–britânicos, implementada após o fim da Segunda Guerra, para fazer frente ao crescimento do movimento nacionalista e socialista pan–árabe que se expressou na nacionalização do canal de Suez, por Nasser; do petróleo, no Iraque, pela Revolução de 1958; na derrocada da monarquia, no Afeganistão, etc.  Essa política foi e é tradicionalmente financiada pela Arábia Saudita e pelos emirados títeres islâmicos.

Fundamentalismo islâmico

Assim como os talibãs, no Afeganistão; a Qaeda, no Mundo Árabe; o Hesbolah, no Líbano; os Irmãos Muçulmanos, no Egito, etc., o Hamas é um descendente, mais ou menos direto, da reorientação política do fundamentalismo islâmico fomentado e apoiado inicialmente pelo imperialismo anglo–estadunidense.

Com a vitória histórica do capital sobre o trabalho, em fins dos anos 1980, e a forte perda de prestígio e de atração do marxismo, do socialista, do racionalismo, do laicismo, etc., a oposição ao imperialismo e à exploração capitalista passou a expressar–se, no mundo árabe, em forma confusa, através de fundamentalismo islâmico combatente que associa a rejeição  ao imperialismo e ao capitalismo à rejeição à modernidade.

Também consciente de seu crescente poder eleitoral, o Hamas abandonou sua tradicional negativa à participação no jogo eleitoral, jogando–se de corpo inteiro nas eleições parlamentares gerais de janeiro desse ano. Para tal, manteve, por mais de um ano, trégua com Israel, apesar da covarde execução do fundador e líder espiritual do movimento, Ahmed Yassin, de 67 anos, cego, paraplégico, entravado em cadeira de rodas, executado através de ataque de mísseis de helicópteros, em 22 de março de 2004, ao sair de uma mesquita.

Após a vitória do Hamas, o governo dos USA, de Israel e das grandes nações da União Européia buscaram entrincheirar–se – e, assim, conquistar tempo e fôlego para reorganizar suas políticas – por de trás da negativa  de negociação com um governo do Hamas. Pouco respeitadores das regras democráticas, prometeram, igualmente, o corte dos recursos da ANP, dos quais dependem mais de cem mil funcionários e boa parte da população, caso a organização não “reconheça” o Estado de Israel e “não abandone o terrorismo”.

Paz e justiça

O Hamas vem mantendo, há mais de um ano, como assinalado, trégua com Israel, o que constitui, nos fatos, um reconhecimento daquele Estado. Imediatamente após a vitória eleitoral, propôs, explicitamente, «trégua de longo prazo», e, implicitamente, reconhecimento de Israel, desde que os israelenses se retirem para as fronteiras de 1967, como exige igualmente a ONU, e liberte todos  os prisioneiros palestinos.

A proposta do Hamas como organização terrorista e irracional, totalmente estranha à política, é uma criação da mídia manipulada pelo imperialismo. Em 2002, o sucessor de Ahmed Yassin, Abdelaziz al–Rantissi, também assassinado pelos israelenses, declarou à BBC inglesa que o "principal objetivo da Intifada” era a “liberação da Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém, e nada mais”. Já que não havia “força para liberar toda a nossa terra". Reiteradas vezes, a direção do Hamas lembrou que a derrota de Israel, que possui amplo arsenal nuclear, é impossível.

Israel e o imperialismo estadunidense e europeu exigem simplesmente que o Hamas aceite a rendição palestina e abandone a luta por um Estado soberano, nas fronteiras de 1967, com capital em Jerusalém Oriental. Reivindicações possíveis de serem alcançadas apenas com a unificação geral da resistência palestina, apoiada pelo movimento pacifista israelense e antiimperialista mundial.

A vitória eleitoral do Hamas pode favorecer a necessária unificação da luta palestina. Sobretudo se o movimento compreende o verdadeiro sentido do apoio eleitoral recebido e abandone o projeto de islamização da sociedade palestina, com propostas de leis, como as anunciadas, de separação dos estudantes de ambos os sexos e o uso obrigatório do véu pelas mulheres.

No longo combate contra o imperialismo e o sionismo, as eleições de 25 de janeiro, assim como a desocupação parcial da faixa de Gaza, foram dois combates vencidos pelos palestinos, em uma guerra talvez ainda dolorosamente longe de sua conclusão. Vitórias parciais que se materializam, mais e mais, na Palestina, no Iraque, no Afeganistão, na Venezuela, na Bolívia, diante dos olhos atônitos dos poderosos que haviam anunciado exultantes o fim da construção da história pelos povos.


(*) Mário Maestri, 57, é historiador. E–mail: maestri@via–rs.net